1. A minha exposição tem a sua origem no cruzamento de um dos eixos que nos é proposto — a distinção entre juízo de existência e juízo de atribuição tal como ela se apresenta em Freud — com uma ou, antes, duas questões filosóficas: a crença e a evidência. Partirei de algumas teses sobre a existência que encontramos em Kant, Husserl, Wittgenstein, para as confrontar a seguir com a doutrina freudiana do juízo. A referência a estes três filósofos será forçosamente demasiado breve, e portanto demasiado seca, mas não creio que seja mutilante.
Estas teses são convergentes e enigmáticas. Elas apontam — em vários registos de um pensamento sempre fundante e inaugural — para uma existência anterior ao modo da facticidade. O seu estatuto é, grosso modo, da ordem de uma ontologia formal que é também uma ontologia do sentido; mas ele toca (diz respeito…) também à fé. Esse estatuto recobre o modo de ser de uma alucinação que, em Freud, põe também uma entidade aquém de qualquer juízo. De certo modo, a alucinação primitiva e este pensamento da existência iluminam-se mutuamente. Permito-me acrescentar que apresento aqui um troço de uma investigação mais vasta na qual mostro que algo como a alucinação é o operador natural da evidência.
É especificamente da crença que me vou ocupar e, no meu título, autorizei-me, por isso, substituir «evidência» por «crença». A substituição da palavra não altera realmente o sentido, pois a evidência é uma forma de crença: uma crença «absoluta» à qual [3] não nos podemos esquivar. De um certo ângulo, poder-se-ia dizer também o contrário: a crença, como a evidência, não se prova, dispensar a prova é o carácter peculiar da evidência. Mas a questão específica da crença toca de um modo directo os temas do nosso colóquio.
2. Aquém do juízo de existência e de predicação existe a fé, o modo da crença «certa». Toda a modalidade da certeza, e também da dúvida, da suputação, da conjectura, remete para uma fé última e matricial. Husserl é o filósofo que formulou este pensamento na sua generalidade mais radical. «Introduzimos o termo crença-mãe (Urglaube) ou proto-doxa (Urdoxa): ele permite assinalar de um modo adequado a referência intencional […] de todas as ‘modalidades da crença’ à crença-mãe»[[Husserl, Ideen, I, trad. fr. (Idées directrices pour une phénoménologie), Gallimard, Paris, 1950, § 105]]. Situada antes do juízo, a crença-mãe não se deixa enunciar. O seu conteúdo, como sabemos, consiste na posição pré-reflexiva, antepredicativa, do mundo. A fé primordial é a fé perceptiva, modo e modelo originários da «evidência incontestável» [[Expérience et Jugement, § 7, trad. fr., P. U. F., Paris, 1970.]], uma evidência que é o fundamento último do conhecimento: «Podemos dizer […] que toda a actividade de conhecimento tem sempre por solo universal um mundo; e isso designa em primeiro lugar um solo de crença passiva universal no ser, que é pressuposto por toda a operação singular de conhecimento» (ibid.).
Este solo, que ecoa em todo o juízo, é um nec plus ultra: «Atingimos aqui a fonte mais profunda na qual se pode colher um esclarecimento sobre a universalidade da ordem lógica e finalmente sobre a do juízo predicativo» [[Ideen, I, § 117.]]. Veremos que esta tese vale tanto para a atribuição negativa como para a afirmativa.
Também Freud postula um pano de fundo do juízo que é igualmente do domínio da fé. Esta não versa sobre a experiência antepredicativa mas é também «matricial». Ela constitui a «ficção», é o termo de Freud [[«Formulations sur les deux principes du cours des événements psychiques», trad. fr., in Freud, Résultats, idées, problèmes, I, P. U. F., Paris, 1984, p. 136, n. 2.]], de uma alucinação primitiva (a expressão é de Laplanche e Pontalis), anterior à esquize do objectivo e do subjectivo. [4]
Esta ficção é uma ficção transcendental. De certo modo, a alucinação primitiva dá conta da fé perceptiva husserliana. É um dos temas que queremos desenvolver, prolongando a ficção freudiana. Pois é necessário notar que a proto-doxa não é algo de absolutamente transparente. Apesar da sua força irresistível, ela revela-se assaz estranha: o que é que justifica esta «espécie de fé [sublinhado nosso] que devemos aos testemunhos do sentido» [[Leibniz, Disc. Prél. Théod., I, § 42, cf. também Descartes, Princ. Phil., I, 72.]]? Curiosamente, a fenomenologia (penso por exemplo em Merleau-Ponty) não se preocupou em interrogar a originariedade da proto-doxa; ela aparece-lhe como um dado último que se compreendería por sisi mesmo, ou, por outras palavras, como uma evidência. Mas numa gênese simultaneamente transcendental e ontogenética, será necessário voltar atrás deste proton, despistar um Ur-Urglaube.
O meu tema arranca daqui. Tem por objectivo a natureza da fé. Pertence à natureza da crença o não se crer senão no verdadeiro, e aí há também algo que exige uma elucidação. A minha hipótese será a seguinte: crer na existência é o próprio conteúdo da crença e não se pode crer senão no verdadeiro porque a existência é por definição verdadeira. Todo o poder da fé radica na «reciprocabilidade» da entidade (ens) e da verdade, conformemente à doutrina medieval dos transcendentais, e é isso mesmo o que persegue de muito perto a ficção transcendental da alucinação primitiva.
Uma tal existência coloca-se atrás da categoria da existência enunciada que consta da tábua kantiana da modalidade, ao lado da possibilidade e da necessidade. Ora é ela que Kant, de certa forma, visa, na última nota dos Paralogismos da Razão Pura, ao notar que na apercepção do sujeito «algo de real […] é dado, mas apenas ao pensamento em geral, e não, por conseguinte, como fenômeno ou como coisa em si» [[Crítica da Razão Pura, B 422.]]. Estamos perante uma existência propriamente pré-categorial, que convém só a uma representação, o «eu penso». Com efeito, o eu penso não constitui em Kant uma vivência, mas uma representação, e é por isso que se distingue do cogito cartesiano ou husserliano: a existência («algo de real», correlato do «pensamento em geral») de que se trata é a de uma significação.
Uma existência pré-categorial, a montante do próprio juízo de existência. Husserl e Wittgenstein sugerem a mesma coisa, que Freud, como veremos de imediato, parece contestar na sua [5] análise do juízo de atribuição. O juízo de existência conduzir-nos-á contudo até este estrato, explicando além disso por que é que é assim, por que é que tem cabimento estabelecer a existência antes de qualquer juízo de existência. A fé primordial é a fé numa existência concebida segundo este modo. Um argumento ontológico (não digo uma prova!) é de certo modo inevitável a partir do mero dado da fé.
É o movimento complexo, «arcaico», sem ser «regressivo», que tentaremos apreender. Comecemos pela atribuição.