Teoria das qualidades primárias e secundárias

Meillassoux2008

A teoria das qualidades primárias e secundárias parece pertencer a um passado filosófico irremediavelmente obsoleto. É hora de reabilitá-la. Para o leitor contemporâneo, tal distinção pode parecer um sofisma escolástico, desprovido de qualquer importância filosófica fundamental. No entanto, como veremos, o que está em jogo é a natureza da relação do pensamento com o absoluto.

Em primeiro lugar, em que consiste essa distinção? Os termos “qualidade primária” e “qualidade secundária” vêm de Locke, mas a base para a distinção já pode ser encontrada em Descartes. Quando me queimo em uma vela, espontaneamente considero a sensação de queimação como estando no meu dedo, não na vela. Não toco uma dor que estaria presente na chama como uma de suas propriedades: o braseiro não se queima a si mesmo quando queima. Mas o que dizemos das afecções deve igualmente ser dito das sensações: o sabor da comida não é saboreado pelo alimento em si e, portanto, não existe nele antes de sua ingestão. Da mesma forma, a beleza melódica de uma sequência sonora não é ouvida pela melodia, a cor luminosa de uma pintura não é vista pelo pigmento colorido da tela, e assim por diante. Em suma, nada sensível – seja uma qualidade afetiva ou perceptiva – pode existir da maneira como me é dada na coisa em si, quando ela não está relacionada a mim ou a qualquer outra criatura viva. Quando se pensa nessa coisa “em si”, ou seja, independentemente de sua relação comigo, parece que nenhuma dessas qualidades pode subsistir. Remova o observador, e o mundo se torna desprovido dessas qualidades sonoras, visuais, olfativas etc., assim como a chama se torna desprovida de dor uma vez que o dedo é removido.

No entanto, não se pode afirmar que o sensível seja injetado por mim nas coisas como uma espécie de alucinação perpétua e arbitrária. Pois há de fato uma ligação constante entre as coisas reais e suas sensações: se não houvesse algo capaz de provocar a sensação de vermelhidão, não haveria percepção de uma coisa vermelha; se não houvesse fogo real, não haveria sensação de queimação. Mas não faz sentido dizer que a vermelhidão ou o calor podem existir como qualidades tanto sem mim quanto comigo: sem a percepção do vermelho, não há coisa vermelha; sem a sensação de calor, não há calor. Seja afetiva ou perceptiva, a qualidade sensível só existe como uma relação: uma relação entre o mundo e a criatura viva que eu sou. Na realidade, o sensível não está simplesmente “em mim” como em um sonho, nem simplesmente “na coisa” como uma propriedade intrínseca: ele é a própria relação entre a coisa e eu. Essas qualidades sensíveis, que não estão nas coisas em si, mas na minha relação subjetiva com elas – essas qualidades correspondem ao que tradicionalmente eram chamadas de qualidades secundárias.

No entanto, não foram essas qualidades secundárias que desacreditaram a teoria tradicional das qualidades. O fato de não fazer sentido atribuir à “coisa em si” (que é basicamente a “coisa sem mim”) aquelas propriedades que só podem surgir como resultado da relação entre a coisa e sua apreensão subjetiva tornou-se efetivamente um lugar-comum que poucos filósofos contestaram. O que foi vigorosamente contestado, no rastro da fenomenologia, foi a maneira como Descartes ou Locke conceberam tal relação: como uma modificação da substância pensante vinculada ao funcionamento mecânico de um corpo material, em vez de, por exemplo, como uma correlação noético-noemática. Mas não se trata de retomar mais uma vez a concepção tradicional da relação constitutiva da sensibilidade: o que importa para nós aqui é que o sensível é uma relação, e não uma propriedade inerente à coisa. Desse ponto de vista, não é particularmente difícil para um filósofo contemporâneo concordar com Descartes ou Locke.

Isso deixa de ser o caso assim que se coloca em jogo o cerne da teoria tradicional das propriedades, a saber, a ideia de que existem dois tipos de propriedade. Pois o que desacreditou decisivamente a distinção entre qualidades primárias e secundárias foi justamente a ideia de tal distinção: a suposição de que a “subjetivação” das propriedades sensíveis (a ênfase em seu vínculo essencial com a presença de um sujeito) poderia ser restrita às determinações sensíveis do objeto, em vez de ser estendida a todas as suas propriedades concebíveis. Por “qualidades primárias”, entende-se propriedades que supostamente são inseparáveis do objeto, propriedades que se supõe pertencerem à coisa mesmo quando eu não a apreendo mais. Elas são propriedades da coisa como ela é sem mim, tanto quanto comigo – propriedades do em-si. Em que consistem? Para Descartes, são todas aquelas propriedades que pertencem à extensão e que, portanto, estão sujeitas à prova geométrica: comprimento, largura, movimento, profundidade, figura, tamanho. Por nossa parte, evitaremos invocar a noção de extensão, uma vez que esta é indissociável da representação sensível: não se pode imaginar uma extensão que não seja colorida e, portanto, que não esteja associada a uma qualidade secundária. Para reativar a tese cartesiana em termos contemporâneos e para enunciá-la nos mesmos termos em que pretendemos defendê-la, manteremos, portanto, o seguinte: todos os aspectos do objeto que podem ser formulados em termos matemáticos podem ser concebidos significativamente como propriedades do objeto em si. Todos os aspectos do objeto que podem dar origem a um pensamento matemático (a uma fórmula ou a uma digitalização), em vez de a uma percepção ou sensação, podem ser significativamente transformados em propriedades da coisa não apenas como ela é comigo, mas também como ela é sem mim.

A tese que defendemos é, portanto, dupla: por um lado, reconhecemos que o sensível só existe como relação de um sujeito com o mundo; mas, por outro lado, sustentamos que as propriedades matematizáveis do objeto estão isentas da restrição de tal relação e que elas estão efetivamente no objeto da maneira como as concebo, esteja ou não em relação com ele. Mas antes de prosseguirmos para justificar essa tese, é necessário entender em que aspecto ela pode parecer absurda a um filósofo contemporâneo – e extirpar a fonte precisa dessa aparente absurdidade.