Goethe – a vida vulgar e trivial

(Hadot2018)

Para Goethe, como dissemos, os homens da Antiguidade sabiam viver no presente, na “saúde do momento”, em vez de se perderem, como o homem moderno, na nostalgia do passado e do futuro. Em uma carta a Zelter, datada de 1829, Goethe desenvolve essa ideia com toda a clareza desejável. Lamenta em primeiro lugar a ausência do destinatário da carta, o músico Zelter, seu amigo. E, nessa oportunidade, entrega-se a uma meditação sobre o presente e a presença, sendo ambas as noções – atualidade temporal e proximidade espacial – expressas pela mesma palavra, Gegenwart, em alemão:

Realmente a presença tem algo de absurdo: imagina-se que ela seja isto: as pessoas veem umas às outras, percebem umas às outras. E para-se por aí. Mas o benefício que se pode extrair de tais instantes é algo de que não se tem consciência. Queremos nos expressar sobre isso da seguinte maneira. O ausente é uma pessoa ideal, ao passo que as pessoas que estão aqui, presentes, parecem absolutamente triviais umas às outras. É deveras curioso que, pela realidade da presença, o ideal seja quase suprimido. Daí, provavelmente, a razão pela qual o ideal do homem moderno só lhe aparece como nostalgia.

Nas linhas seguintes, Goethe alude à nova “maneira de viver” que se generalizou. Nesse ano de 1829 em que ele escreve, esse “homem moderno” evocado por ele é o homem romântico, cuja visão de mundo triunfa na Europa. A nostalgia está na moda, nostalgia pelo ser ausente, longínquo, inacessível; nostalgia pelo passado, ou pelo futuro, ou por outro mundo, outra vida, que estaria noutro lugar. Essa nostalgia do “ideal” é acompanhada por uma depreciação do real, do cotidiano, do presente, que os românticos consideram trivial, algo que Goethe recusa por completo.

Não que Goethe ignore que os instantes presentes da vida cotidiana possam se enviscar no que ele denomina das Gemeine, termo que, conforme o contexto, pode significar em sua obra o trivial, o comum, o prosaico, o banal, o mecânico, o vulgar, o medíocre, a platitude. Num poema em honra a Schiller, Goethe alude à elevação da alma desse poeta acima desse estado de mediocridade: “No entanto, seu espírito progredia a passos largos / No mundo eterno do verdadeiro, do bem, do belo, / E, atrás dele, numa aparência sem consistência, / Restava aquilo de que somos todos escravos, o trivial.”

Em Os Anos de Viagem, evoca ainda o homem que se eleva até seu mais alto cume e é capaz de se manter nessa altura “sem se engolfar de novo, por orgulho ou por egoísmo, na platitude”.

Talvez se pudesse dizer que, para Goethe, das Gemeine é tudo que não é iluminado pela Ideia, quer se trate da Ideia imanente às leis da natureza, quer da Ideia imanente às leis morais. A vida vulgar e trivial é uma vida sem ideal, uma rotina dominada pelo hábito, pelas preocupações, por desejos egoístas, que nos escondem o esplendor da existência. Para se libertar do trivial e da platitude, não se deve, segundo Goethe, fazer como os românticos, que se evadem do presente e se refugiam num ideal longínquo ou futuro; ao contrário, é preciso reconhecer que cada instante está longe de ser trivial, que é necessário descobrir sua riqueza e seu valor, discernir nele a presença do ideal, seja porque, de fato, ele é rico e pregnante pela intensidade da experiência que proporciona, seja porque a ele se pode conferir um valor moral ao responder às exigências do dever, seja porque a poesia e a arte são capazes de idealizá-lo. É somente graças a essa conscientização do valor do presente que a vida pode recuperar sua dignidade e sua nobreza. É essa visão do ideal no real que Goethe encontrava nos quadros de Claude Lorrain, e, sobretudo, na arte antiga: o real, para os antigos, era de certa forma, a seus olhos, um “real idealizado”.