Realidade material que existe independentemente de nós. — A “coisa em si”, em Kant, é a matéria que está na origem de nossas sensações. Opõe-se ao fenômeno, à representação, que depende de nosso espírito. Fichte distingue a coisa em si {an sich) e a vida absoluta do espírito reflexivo, que é em si (in sich) no sentido de “interior a si”; num caso, trata-se de um em-si objetivo, no outro de um em-si idêntico à experiência absoluta do sujeito. Hegel e mais tarde Sartre e a filosofia moderna opõe o em-si (a coisa) ao “para-si” (a existência humana). O em-si se caracteriza por sua imutabilidade, sua espessura de matéria; o para-si, por sua mobilidade e liberdade. [Larousse]
Cabestan2001
- Ao final de O Ser e o Nada [EN], Sartre declara: “o homem é uma paixão inútil” (p. 678). Qual é, então, o objeto dessa paixão fundamental da qual derivam todas as outras paixões, como o amor, o ódio, a ambição, etc.? Como atesta, aliás, a existência do desejo ao qual falta o objeto desejado, a ontologia sartriana define a realidade humana como falta. Contudo, o que falta fundamentalmente à realidade humana não é um objeto específico, por exemplo, dinheiro numa carteira, mas o que Sartre denomina “a síntese impossível do para-si e do em-si”. Em outras palavras, a realidade humana esforça-se por conjugar em si, de mil e uma maneiras, a impassibilidade do mineral (o em-si) e a consciência de si ou para-si. Tal é o caso descrito por Sartre do homem que sofre e que é assombrado por um sofrimento que seria ao mesmo tempo sofrimento para si, consciente de si mesmo, e sofrimento em si, isto é, um bloco de sofrimento enorme e opaco. Compreende-se, desse ponto de vista, a gesticulação do sofrimento “torço os braços, grito” a fim de “esculpir uma estátua em si do sofrimento”. Mas esses esforços são vãos; a síntese é irrealizável porque contraditória (EN, p. 131).
- O ato ontológico, essa nadificação primeira pela qual o em-si se degrada em para-si, corresponde ao esforço de um em-si para se fundar, isto é, a uma tentativa do ser para superar a contingência do seu ser. Mas essa tentativa fracassa, pois o em-si não pode se fundar sem introduzir em si essa distância, esse nada separador ou descompressão de ser que faz dele um para-si. Assim, o surgimento do para-si é inseparável de um fracasso que assombra o para-si e que define o sentido da realidade humana, o propósito da transcendência (EN, p. 132). É assim que reencontramos, tanto na reflexão que visa apreender o refletido como em-si (EN, p. 200) quanto nas relações concretas com o outro enquanto projeto de objetivação ou de assimilação do outro (EN, p. 412), esse sentido que é o valor supremo e a falta de todas as faltas, e que é também o Ens causa sui que as religiões nomeiam Deus.
- Entrevê-se aqui de que maneira a ontologia, mesmo que não lhe caiba formular imperativos, predefine a questão moral de uma eventual conversão, entendida como uma mudança radical fundada sobre um novo projeto de existência (EN, p. 690). Uma vez reconhecido, com efeito, que a realidade humana se esgota em vão ao perseguir um ideal inacessível, porque contraditório, de fundação de si como em-si, somos levados a perguntar se a liberdade não pode tomar a si mesma por valor e escolher ser o que ela não é e não ser o que ela é, em uma palavra, a autenticidade.