A este respeito, analogia entre as posições de Nietzsche e Dostoiévski mal pode ser exagerada: o hiperdesenvolvimento da consciência (apanágio do europeu moderno) é uma doença. Justamente em razão do extremo desenvolvimento de sua consciência, o homem culto do século XIX é um ente abstrato, diretamente deduzido do plano das ideias, como que destilado de um alambique. Exatamente por isso, ele é incapaz de agir de modo espontâneo, já que está condenado, por seus escrúpulos de consciência, a desdobrar a série infinita dos motivos e causas condicionantes de todo agir.
[…]O homem culto padece a enfermidade de sua consciência requintada. Essa enfermidade o torna impotente para o que quer que seja. Se tudo aquilo que ocorre acontece em conformidade com as leis fundamentais e inexoráveis, delas fluindo diretamente, então essa mesma consciência clarividente deve inferir daí que é completamente impossível não somente mudar o que quer que seja, mas também agir de modo diverso daquele segundo o qual naturalmente se reagirá.
[…]Esse ratinho, confinado por sisi mesmo ao seu buraco, é o homem do subsolo, que se põe a registrar suas memórias, como um meio de torturar sua própria consciência requintada, de narcotizar a dor de uma existência malograda, revolvendo suas mais dolorosas feridas, fazendo da autoacusação o automartírio, e da tortura um meio de defesa contra a dor e o absurdo de sua vida. Vejamos, então, um pouco esse ratinho em ação. Ele também foi ofendido, por exemplo (ele se sente quase continuamente ofendido), e pretende se vingar. É possível que acumule em si mais raiva ainda que o homem da natureza e da verdade. O desejo desprezível e mesquinho de pagar ao seu ofensor o mal com o mal o domina, talvez ainda mais violentamente do que domina o homem da natureza e da verdade, porque esse, em sua rudeza natural, considera sua vingança como uma ação perfeitamente justa, enquanto o ratinho não lhe pode admitir a justiça, por causa de sua consciência mais clarividente. Mas eis-nos, enfim, chegados ao ato mesmo da vingança. Em acréscimo à vilania inicial, o desgraçado ratinho conseguiu acumular em torno de si, sob a forma de dúvidas e [55] hesitações, tantas outras vilanias, à primeira indagação ajuntou tantas outras, completamente insolúveis, que, por mais que faça, criou em torno de si um atoleiro fatal, um lodaçal fedorento, um charco de lama, formado de suas hesitações de suas suspeitas, de sua agitação, de todos os escarros que fazem chover sobre ele os homens de ação que o cercam, o julgam, o aconselham e dele riem a bandeiras despregadas.