Zubiri (IR:li-lv) – inteligir e sentir

Para muitos leitores, a meu livro Sobre a Essência faltava um fundamento porque consideravam que saber o que é a realidade é tarefa que não pode ser levada a efeito sem um estudo prévio do que nos é possível saber. Isso é verdade, quando se trata de alguns problemas concretos. Afirmar, porém, de forma absolutamente geral, que isso seja próprio do saber da realidade enquanto tal é algo diferente. Esta afirmação é uma ideia que, de diversas formas, constituiu a tese animadora da quase totalidade da filosofia moderna de Descartes a Kant; é o “criticismo”. O fundamento de toda filosofia seria a crítica, o discernimento do que se pode saber. Penso, no entanto, que isso é inexato. Certamente, a investigação sobre a realidade precisa lançar mão de alguma conceituação do que seja o saber. É, porém, essa necessidade uma anterioridade? Não creio, porque não é menos verdade que uma investigação das possibilidades do saber não pode ser levada a efeito e, de fato, nunca foi levada a efeito, se não se apela para alguma conceituação da realidade. O estudo Sobre a Essência contém muitas afirmações acerca da possibilidade do saber. Mas, por sua vez, é verdade que o estudo do saber e de suas possibilidades inclui muitos conceitos a respeito da realidade. É que é impossível uma prioridade intrínseca do saber sobre a realidade e da realidade sobre o saber. O saber e a realidade são, em sua própria raiz, estrita e rigorosamente congêneres. Não há prioridade de um sobre o outro. E isso não somente devido a condições de fato de nossas investigações, mas devido a uma condição intrínseca e formal da própria ideia de realidade e de saber. Realidade é o caráter formal – a formalidade – segundo o qual o apreendido é algo “em próprio”, algo “de seu”. E saber é apreender algo segundo essa formalidade. Voltarei em seguida a estas ideias. Por isso, a suposta anterioridade crítica do saber sobre a realidade, isto é, sobre o sabido, não é no fundo senão uma espécie de timorata hesitação no próprio começo do filosofar. Algo assim como se alguém que quisesse abrir uma porta passasse horas estudando o movimento dos músculos de sua mão; provavelmente não chegaria nunca a abrir a porta. No fundo, essa ideia crítica da anterioridade nunca chegou por si só a um saber do real, e quando o conseguiu tal se deveu, em geral, a não ter sido fiel à crítica mesma. Não podia ser de outra forma: saber e realidade são congêneres em sua raiz. Portanto, publicar este estudo sobre a inteligência depois de ter publicado um estudo sobre a essência não significa preencher o vazio de uma necessidade insatisfeita; significa, pelo contrário, mostrar que o estudo do saber não é anterior ao estudo da realidade. O “após” a que antes me referia não é, pois, uma mera constatação de fato, mas a demonstração em ato da deliberada repulsa de toda crítica do saber como fundamento prévio ao estudo do real.

Isso, porém, não é tudo. Venho empregando a expressãosaber” com intencional indeterminação, porque a filosofia moderna não começa com o saber pura e simplesmente, mas com esse modo de saber que é chamado de “conhecimento”. Assim, a crítica é Crítica do conhecimento, da episteme, ou, como se costuma dizer, é “epistemologia”, ciência do conhecimento. Pois bem, penso que isso é sumamente grave. Porque o conhecimento não é algo que repousa sobre si mesmo. E não me refiro com isso aos fatores determinantes de caráter psicológico, sociológico e histórico do conhecer. Certamente uma psicologia do conhecimento, uma sociologia do saber e uma historicidade do conhecer são coisas essenciais. Não são, porém, algo primário. Porque o primário do conhecimento está em ser um modo de intelecção. Portanto, toda epistemologia pressupõe uma investigação do que estruturalmente e formalmente é a inteligência, o Noûs, um estudo de “noologia”. A vaga ideia do “saber” não se concretiza em primeira instância no conhecer, mas na intelecção enquanto tal. Não se trata de uma psicologia da inteligência nem de uma lógica, mas da estrutura formal do inteligir.

Que é, pois, inteligir? Ao longo de toda a sua história, a filosofia tratou muito detidamente dos atos de intelecção (conceber, julgar, etc.) em contraposição aos diferentes dados reais que os sentidos nos fornecem. Uma coisa, diz-se-nos, é sentir; outra é inteligir. Esse enfoque do problema da inteligência contém, no fundo, uma afirmação: inteligir é posterior a sentir, e essa posterioridade é uma oposição. Foi a tese inicial da filosofia desde Parmênides, que veio gravitando imperturbavelmente, com mil variantes, em torno de toda a filosofia europeia.

Mas isso é, antes de tudo, uma ingente vagueza, porque não nos foi dito em que consiste formalmente o inteligir enquanto tal. Diz-se-nos, no máximo, que os sentidos dão à inteligência as coisas reais sentidas para que a inteligência as conceitue e as julgue. No entanto, não nos é dito nem o que é formalmente sentir nem, sobretudo, o que é formalmente inteligir. Pois bem, penso que inteligir consiste formalmente em apreender o real como real, e que sentir é apreender o real em impressão. Real, aqui, significa que os caracteres que o apreendido tem na própria apreensão ele os têm “em próprio”, “de seu”, e não somente em função, por exemplo, de uma resposta vital. Não se trata de coisa real na acepção de coisa além da apreensão, mas do apreendido mesmo na apreensão, mas enquanto é apreendido como algo que é “em próprio”. É o que chamo de formalidade de realidade. É por isso que o estudo da intelecção e o estudo da realidade são congêneres. Pois bem, isto é decisivo. Porque, como os sentidos nos dão no sentir humano coisas reais, com todas as suas limitações, mas coisas reais, sucede que essa apreensão das coisas reais enquanto sentidas é uma apreensão senciente; mas, enquanto apreensão de realidades, é uma apreensão intelectiva. Daí que o sentir humano e a intelecção não sejam dois atos numericamente diferentes, cada um completo em sua ordem, mas constituem dois momentos de um único ato de apreensão senciente do real: é a inteligência senciente. Não se trata de uma intelecção voltada primariamente para o sensível, mas do inteligir e do sentir em sua própria estrutura formal. Não se trata de inteligir o sensível e de sentir o inteligível, senão de que inteligir e sentir constituem estruturalmente – se se quiser empregar um vocábulo e um conceito impróprios neste lugar -uma única faculdade, a inteligência senciente. O sentir humano e o inteligir não só não se opõem, mas constituem em sua unidade intrínseca e formal um só e único ato de apreensão. Este ato, enquanto senciente, é impressão; enquanto intelectivo, é apreensão de realidade. Portanto, o ato único e unitário de intelecção senciente é impressão de realidade. Inteligir é um modo de sentir, e sentir é, no homem, um modo de inteligir.

Qual é a índole formal deste ato? É o que chamo de mera atualidade do real. Atualidade não é, como pensavam os latinos, o caráter de ato de algo. Ser cão em ato é ser a plenitude formal daquilo em que consiste ser cão. Por isso eu antes chamo esse caráter de atuidade. Atualidade, em contrapartida, não é caráter de algo em ato, mas de algo que é atual; duas coisas muito diferentes. Os vírus tinham atuidade desde milhões de anos atrás, mas só agora adquiriram uma atualidade que antes não tinham. Mas atualidade não é sempre, como no caso dos vírus, algo extrínseco à atuidade do real. Pode ser algo intrínseco às coisas reais. Quando um homem está presente porque é ele que se faz presente, dizemos que esse homem é atual naquilo em que se faz presente. Atualidade é um estar, mas um estar presente desde 1 si mesmo, desde sua própria realidade. Por isso, a atualidade pertence à própria realidade do atual, mas não acrescenta, nem tira, nem modifica nenhuma de suas notas reais. Pois bem, a intelecção humana é formalmente mera atualização do real na inteligência senciente.

Aí está a ideia, a única ideia que há em todo este livro ao longo de suas centenas de páginas. Estas páginas não são senão a explicação daquela única ideia. Essa explicação não é uma questão de raciocínios conceituais, mas de uma análise dos fatos de intelecção. Certamente é uma análise complexa e nada fácil; por isso foram inevitáveis repetições por vezes monótonas. Mas é mera análise.

Pois bem, a intelecção tem diferentes modos, isto é, há diferentes modos de mera atualização do real. Há um modo primário e radical, a apreensão do real atualizado em e por si mesmo: é o que chamo de apreensão primordial do real. Por isso, seu estudo é uma análise rigorosa das ideias de realidade e de intelecção. Mas há outros modos de atualização. São os modos segundo os quais o real é atualizado não somente em e por si mesmo, mas também entre outras coisas e no mundo. Não se trata de “outra atualização”, mas de um desdobramento de sua atualização primordial: é, por isso, uma re-atualização. Como a intelecção primordial é senciente, sucede que essas re-atualizações também são sencientes. São duas: o logos e a razão, logos senciente e razão senciente. O conhecimento não é senão uma culminação de logos e razão. Seria inútil dizer aqui o que são logos e razão; isso será feito ao longo deste estudo.

  1. Este uso da preposição “desde”, ou seja, para introduzir a perspectiva, o ângulo, o enfoque, o aspecto que se expressam é próprio do espanhol, e não se dá em português. Sucede, porém, que o mais das vezes Zubiri faz uso filosófico da preposição, especialmente em razão de sua etimologia (contração das preposições latinas de, ex, de), como se verá claramente em Inteligência e Logos, a Segunda Parte de Inteligência Senciente. Nesses casos, mantivemos na tradução a preposição, em vez de vertê-la por “de”, “do ângulo de”, etc., para que não se perdesse seu caráter intencional e unitário. (N. T.)[]

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