Zubiri (2011:liii-lv) – inteligência senciente

Carlos Nougué

Que é, pois, inteligir? Ao longo de toda a sua história, a filosofia tratou muito detidamente dos atos de intelecção (conceber, julgar, etc.) em contraposição aos diferentes dados reais que os sentidos nos fornecem. Uma coisa, diz-se-nos, é sentir; outra é inteligir. Esse enfoque do problema da inteligência contém, no fundo, uma afirmação: inteligir é posterior a sentir, e essa posterioridade é uma oposição. Foi a tese inicial da filosofia desde Parmênides, que veio gravitando imperturbavelmente, com mil variantes, em torno de toda a filosofia europeia.

Mas isso é, antes de tudo, uma ingente vagueza, porque não nos foi dito em que consiste formalmente o inteligir enquanto tal. Diz-se-nos, no máximo, que os sentidos dão à inteligência as coisas reais sentidas para que a inteligência as conceitue e as julgue. No entanto, não nos é dito nem o que é formalmente sentir nem, sobretudo, o que é formalmente inteligir. Pois bem, penso que inteligir consiste formalmente em apreender o real como real, e que sentir é apreender o real em impressão. Real, aqui, significa que os caracteres que o apreendido tem na própria apreensão ele os têm “em próprio”, “de seu”, e não somente em função, por exemplo, de uma resposta vital. Não se trata de coisa real na acepção de coisa além da apreensão, mas do apreendido mesmo na apreensão, mas enquanto é apreendido como algo que é “em próprio”. É o que chamo de formalidade de realidade. É por isso que o estudo da intelecção e o estudo da realidade são congêneres. Pois bem, isto é decisivo. Porque, como os sentidos nos dão no sentir humano coisas reais, com todas as suas limitações, mas coisas reais, sucede que essa apreensão das coisas reais enquanto sentidas é uma apreensão senciente; mas, enquanto apreensão de realidades, é uma apreensão intelectiva. Daí que o sentir humano e a intelecção não sejam dois atos numericamente diferentes, cada um completo em sua ordem, mas constituem dois momentos de um único ato de apreensão senciente do real: é a inteligência senciente. Não se trata de uma intelecção voltada primariamente para o sensível, mas do inteligir e do sentir em sua própria estrutura formal. Não se trata de inteligir o sensível e de sentir o inteligível, senão de que inteligir e sentir constituem estruturalmente — se se quiser empregar um vocábulo e um conceito impróprios neste lugar — uma única faculdade, a inteligência senciente. O sentir humano e o inteligir não só não se opõem, mas constituem em sua unidade intrínseca e formal um só e único ato de apreensão. Este ato, enquanto senciente, é impressão; enquanto intelectivo, é apreensão de realidade. Portanto, o ato único e unitário de intelecção senciente é impressão de realidade. Inteligir é um modo de sentir, e sentir é, no homem, um modo de inteligir.

Qual é a índole formal deste ato? É o que chamo de mera atualidade do real. Atualidade não é, como pensavam os latinos, o caráter de ato de algo. Ser cão em ato é ser a plenitude formal daquilo em que consiste ser cão. Por isso eu antes chamo esse caráter de atuidade. Atualidade, em contrapartida, não é caráter de algo em ato, mas de algo que é atual; duas coisas muito diferentes. Os vírus tinham atuidade desde milhões de anos atrás, mas só agora adquiriram uma atualidade que antes não tinham. Mas atualidade não é sempre, como no caso dos vírus, algo extrínseco à atuidade do real. Pode ser algo intrínseco às coisas reais. Quando um homem está presente porque é ele que se faz presente, dizemos que esse homem é atual naquilo em que se faz presente. Atualidade é um estar, mas um estar presente desde 1 si mesmo, desde sua própria realidade. Por isso, a atualidade pertence à própria realidade do atual, mas não acrescenta, nem tira, nem modifica nenhuma de suas notas reais. Pois bem, a intelecção humana é formalmente mera atualização do real na inteligência senciente.

Original

  1. Este uso da preposição “desde”, ou seja, para introduzir a perspectiva, o ângulo, o enfoque, o aspecto que se expressam é próprio do espanhol, e não se dá em português. Sucede, porém, que o mais das vezes Zubiri faz uso filosófico da preposição, especialmente em razão de sua etimologia (contração das preposições latinas de, ex, de), como se verá claramente em Inteligência e Logos, a Segunda Parte de Inteligência Senciente. Nesses casos, mantivemos na tradução a preposição, em vez de vertê-la por “de”, “do ângulo de”, etc., para que não se perdesse seu caráter intencional e unitário. (N. T.)[]