Zubiri (2011:li-liii) – saber e realidade

Carlos Nougué

[…] O estudo Sobre a Essência contém muitas afirmações acerca da possibilidade do saber. Mas, por sua vez, é verdade que o estudo do saber e de suas possibilidades inclui muitos conceitos a respeito da realidade. É que é impossível uma prioridade intrínseca do saber sobre a realidade e da realidade sobre o saber. O saber e a realidade são, em sua própria raiz, estrita e rigorosamente congêneres. Não há prioridade de um sobre o outro. E isso não somente devido a condições de fato de nossas investigações, mas devido a uma condição intrínseca e formal da própria ideia de realidade e de saber. Realidade é o caráter formal — a formalidade — segundo o qual o apreendido é algo “em próprio”, algo “de seu”. E saber é apreender algo segundo essa formalidade. Voltarei em seguida a estas ideias. Por isso, a suposta anterioridade crítica do saber sobre a realidade, isto é, sobre o sabido, não é no fundo senão uma espécie de timorata hesitação no próprio começo do filosofar. Algo assim como se alguém que quisesse abrir uma porta passasse horas estudando o movimento dos músculos de sua mão; provavelmente não chegaria nunca a abrir a porta. No fundo, essa ideia crítica da anterioridade nunca chegou por si só a um saber do real, e quando o conseguiu tal se deveu, em geral, a não ter sido fiel à crítica mesma. Não podia ser de outra forma: saber e realidade são congêneres em sua raiz. Portanto, publicar este estudo sobre a inteligência depois de ter publicado um estudo sobre a essência não significa preencher o vazio de uma necessidade insatisfeita; significa, pelo contrário, mostrar que o estudo do saber não é anterior ao estudo da realidade. O “após” a que antes me referia não é, pois, uma mera constatação de fato, mas a demonstração em ato da deliberada repulsa de toda crítica do saber como fundamento prévio ao estudo do real.

Isso, porém, não é tudo. Venho empregando a expressãosaber” com intencional indeterminação, porque a filosofia moderna não começa com o saber pura e simplesmente, mas com esse modo de saber que é chamado de “conhecimento”. Assim, a crítica é Crítica do conhecimento, da epistéme, ou, como se costuma dizer, é “epistemologia”, ciência do conhecimento. Pois bem, penso que isso é sumamente grave. Porque o conhecimento não é algo que repousa sobre si mesmo. E não me refiro com isso aos fatores determinantes de caráter psicológico, sociológico e histórico do conhecer. Certamente uma psicologia do conhecimento, uma sociologia do saber e uma historicidade do conhecer são coisas essenciais. Não são, porém, algo primário. Porque o primário do conhecimento está em ser um modo de intelecção. Portanto, toda epistemologia pressupõe uma investigação do que estruturalmente e formalmente é a inteligência, o Noús, um estudo de “noologia”. A vaga ideia do “saber” não se concretiza em primeira instância no conhecer, mas na intelecção enquanto tal. Não se trata de uma psicologia da inteligência nem de uma lógica, mas da estrutura formal do inteligir.

Original