Lettres philosophiques de Voltaire
IV. “Sigamos nossos impulsos, observemo-nos a nós mesmos, e vejamos se não encontraremos os caracteres vivos dessas duas naturezas.
Tantas contradições se encontrariam num sujeito simples?
Essa duplicidade do homem é tão visível que alguns pensaram que tínhamos duas almas, pois um sujeito simples lhes parecia incapaz de tamanhas e tão súbitas variações, de uma presunção desmedida a um horrível abatimento de coração. (Pascal)
Nossas diversas vontades não são contradições na natureza, e o homem não é um sujeito simples. Ele é composto de inúmeros órgãos: se um só desses órgãos se altera um pouco, necessariamente muda todas as impressões do cérebro, e o animal terá novos pensamentos e novas vontades. É muito verdade que às vezes nos abatemos de tristeza, outras nos inflamos de presunção – e isso deve ocorrer quando nos encontramos em situações opostas. Um animal que seu dono acaricia e alimenta, e outro que se degola lentamente com destreza para dissecá-lo, experimentam sentimentos bem contrários: nós também; e as diferenças que há em nós são tão pouco contraditórias que seria contraditório que não existissem.
Os loucos que disseram que temos duas almas, pela mesma razão poderiam nos dar trinta ou quarenta; pois um homem, numa grande paixão, tem frequentemente trinta ou quarenta ideias diferentes sobre a mesma coisa, e necessariamente as deve ter, conforme esse objeto lhe aparece sob diferentes aspectos.
Essa pretensa duplicidade do homem é uma ideia tão absurda quanto metafísica. Eu diria igualmente que o cão que morde e que acaricia é duplo; que a galinha, que tanto cuida de seus pintos e depois os abandona a ponto de não os reconhecer, é dupla; que o gelo, que reflete ao mesmo tempo objetos diferentes, é duplo; que a árvore, ora frondosa, ora despojada de folhas, é dupla. Confesso que o homem é inconcebível; mas toda a natureza também o é, e não há mais contradições aparentes no homem que no resto do universo.”