Sloterdijk (CRC:460-464) – medicina e suspeita dos corpos

Mesmo o médico, pelo menos o médico marcado pela medicina moderna científico-natural, exerce uma atividade de um tipo polêmico: o que é praticado sob o ponto de vista positivo como “medicina” vem à tona em uma perspectiva pragmática como combate às doenças. Curar (totalizar) e combater são dois aspectos da mesma coisa.1 Enquanto, porém, o corpo nu é para o voyeur a imagem buscada, o médico parte hoje do corpo nu, a fim de descobrir em seu interior as fontes de perigos. As analogias entre a diagnóstica médica moderna e as maquinações dos serviços secretos saltam (até o nível do detalhe linguístico) fortemente aos olhos; o médico empreende em certa medida uma espionagem somática. O corpo é o portador secreto, vigiado por o tempo necessário para que se conheça tanto as suas circunstâncias internas quanto as “medidas” a serem tomadas. Como na diplomacia secreta e na espionagem, na medicina também se “sonda”, se ausculta e se observa muito. “Faz-se entrar clandestinamente” nos corpos aparelhos auxiliares médicos tais como agentes, sondas, câmeras, peças de junção, cateteres, lâmpadas e canalizações. Em meio a auscultaçóes, o médico observa o corpo como alguém que escuta com o ouvido colado à parede. Reflexos são anotados, segredos (secrets) são arrancados, tensões medidas, valores orgânicos enumerados. Enunciados quantitativos, seja por meio de números de produção, contingente de pas, valores urinários ou pontos de diabete são avaliados aqui e ali maneira particular por causa de sua “objetividade material”. Para o médico, assim como para o agente, também não resta com frequência outro caminho senão revolver em secreções e dejetos 2, porque as investigações precisam acontecer regularmente de maneira indireta, sem perturbar o funcionamento normal do corpo ou da corporeidade espreitada. Só métodos refinados e com frequência também famigerados levam a elucidações sobre os âmbitos secretos e difíceis de serem penetrados. Com certeza, o estar à espreita mais recente da interioridade do corpo não se atemoriza e dá cada vez menos passos atrás diante dos impulsos diretos e agressivos; por vezes, apaga-se o limite entre diagnóstico e intervenção: matérias-primas estranhas são infiltradas sub-repticiamente no corpo. Em meio a essas espreitas e radioscopias do corpo, não são apenas as entradas e saídas naturais que auxiliam como açudes. Com frequência, o corpo é até mesmo cortado diretamente e o cofre, esvaziado, desnudado. E assim como os agentes, os médicos também projetam uma grande ambição na decodificação de suas informações, para que o “objeto” não saiba o que se sabe sobre ele. O blefe erudito e a dissimulação visada por “razões terapêuticas” cindem mutuamente o saber médico e a consciência dos pacientes. A codificação e a manutenção do segredo caracterizam o estilo médico próprio ao serviço secreto; os dois exercem formalmente práticas de intelligence análogas.

Se as comparações entre a ótica médica e a ótica própria ao serviço secreto se impõem para a medicina diagnóstica, então analogias polêmicas ainda mais claras se encontram vigentes no caso da medicina operativa. A cirurgia tem em comum com o militarismo o conceito de “operação”; por outro lado, conceitos como o de corpos estranhos, bubões, focos purulentos, envenenamento, podridão, etc. estabelecem uma ponte entre os mundos da representação da medicina e da polícia. O combate aos crimes usa há muito tempo um jargão médico. O mal, que encontra na medicina, na polícia e no exército os seus combatentes, não aparece apenas nas diversas manifestações de doença, criminalidade e adversários de guerra, mas essas manifestações também podem facilmente se transformar passando de uma forma a outra. Isso também coloca as disciplinas “teóricas” polêmicas — ciências de guerra, serviços de notícias, polícias, medicina 3 — umas em relação às outras, uma proximidade parcialmente material, e ainda mais metodológica. Todas elas seguem a lógica da desconfiança, que impele à frente a formação de estratégias e de um saber inimigo prático e teórico. Mesmo a medicina moderna é, mais ainda do que qualquer uma de suas antecessoras, uma empiria negra. Ela finca pé na condição a priori, segundo a qual entre o sujeito e sua doença não poderia existir nenhuma outra relação senão a de inimizade; “ajudar sujeito significa, por conseguinte, auxiliá-lo a alcançar uma vitória sobre o agressor “doença”. A doença aparece a partir dessa ótica de hostilização necessariamente como uma invasão, e é por si mesmo compreensível o fato de não haver com ela nenhuma outra lida senão a lida polêmica, defensiva e agressiva— não uma lida integrante ou compreensiva. A representação a partir da qual a doença — como toda e qualquer hostilização — também poderia ser uma auto-expressão originária e, em certo sentido, “verdadeira” do “sujeito”, é excluída a partir do ponto de partida do procedimento médico moderno. Na práxis, é mal vista a ideia de que a doença, em um dado tempo, poderia ser uma relação necessária e verdadeira de um indivíduo consigo mesmo uma expressão de sua existência. A doença precisa ser pensada como o outro e o estranho, e esse elemento polemicamente alijado é tratado pela medicina com isolamento e objetivação, de maneira em nada diversa da que os órgãos de segurança interna tratam os suspeitos e as instâncias de interdição moral tratam as pulsões sexuais.

A medicina de uma sociedade latentemente paranóica no fundo pensa o corpo como um risco de subversão. Nele, o risco de doença faz tique-taque como uma bomba-relógio; é suspeito como o assassino presuntivamente futuro da pessoa que mora nele. O corpo é meu autor de um atentado. Se na época das primeiras assepsias, os bacilos e vírus, de maneira demoniacamente ultraestilizada, se tornaram o símbolo para tudo aquilo que desperta o mal — até um ponto em que políticos passaram a identificar seus adversários como bacilos (a retórica fascista, de maneira semelhante à comunista, nos fornece exemplos disso: uma profusão de bacilos judaicos, marcados por raças estrangeiras, revisionistas, anarquistas, decompositores), hoje, na era da segunda assepsia, não é apenas o “corpo estranho” (o agente patogênico), mas também o próprio corpo que é concebido como um inimigo presuntivo. Como ele poderia se tornar doente, ele é a criança problemática da segurança interior. Essa suspeita cria o corpo “medicinal” — ou seja, o corpo como campo de batalha da medicina preventiva e operativa. Segundo alguns estatísticos, a maior parte de todas as intervenções cirúrgicas é constituída por operações preventivas e de segurança, por medidas nascidas da desconfiança, cujo caráter supérfluo é velado por meio do alívio oriundo do fato de os receios não terem se confirmado. Podemos denominar esse procedimento de pessimismo metódico. O segredo de seu procedere reside no fato de ele com uma das mãos pintar na parede o diabo e com a outra operá-lo. Assim como todos os sistemas de segurança, tais medidas de precaução também vivem da expansão do âmbito do temor.

Se podemos dizer que as sociedades manifestam em suas medicinas os seus sentimentos vitais, então a nossa sociedade revela: a vida é perigosa demais para que possamos vivê-la. Por outro lado, porém, ela é deliciosa demais, para que a joguemos fora. Entre a delícia e o perigo, busca-se o meiotermo seguro. Quanto mais, por um lado, a vida se assegura, tanto mais por outro lado ela é virtualizada, expulsa e alijada; transforma-se em mero potencial, que não quer se colocar em jogo e se concretizar, pois a entrada em ação não pode acontecer sem risco. A medicina preventiva, operativa, protética e sedativa mantém diante de nossa sociedade o espelho: nele se apresentam, sob uma forma modernizada, mas impelindo-nos arcaicamente, os temores existenciais de uma civilização, na qual todos precisam temer, seja de uma maneira patente ou em segredo, a morte violenta.

Esses temores se reorganizaram com o esmaecimento 4 da metafísica europeia cristã. Com isso, a existência é coberta por ideologias de seguridade e de sanitarismo, e, assim como pensamento policial e a higiene passaram suavemente um para o lado do outro, o chefe da sessão de polícia judiciária, Dr. Herold, expressou algo digno de reflexão, ao ver surgirem para a polícia do futuro tarefas de “sanitarismo social”.5 A ideia sanitária não significava outra coisa senão reverência e prevenção. Por detrás da vontade iluminista de saber descobrimos, portanto, sempre ainda, sim, em formas refinadamente desencadeadas, temores arcaicos de contato e desejos de eliminação. Eles dão para as disciplinas polêmicas a energia necessária, acumularão acúmulo de saberes e práticas para a finalidade aspirada. Prognóstico científico e prevenção polêmica encontram-se, no que concerne à coisa em questão, na mesma linha. Impedir, evitar, alijar, combater: são esses os a prioris pragmáticos das polêmicas ciências preventivas. Neles se organizou o esclarecimento completamente como um saber combativo.

Exprimir isso significa ao mesmo tempo descrever a tarefa de uma filosofia interpretativa, a saber, retornar a um ponto que se encontra aquém do ponto de partida polêmico dessas disciplinas e “ciências”, descobrindo a lógica da hostilização. Em meio a esse retorno vêm à tona os temores e os empenhos volitivos, que se acham antes da hostilização e da prevenção: trata-se dos motivos cegos da autoconservação. [SLOTERDIJK, Peter. Crítica da Razão Cínica. Rio de Janeiro: Estação Liberdade, 2012, p. 460-464]

  1. Poder-se-ia imaginar com certeza uma tipologia médica, que avaliasse esses aspectos de maneira fortemente recíproca: medicina de integração, que não trata a doença como inimiga do doente: medicina de combate, que se relaciona com a doença exclusivamente como com um adversário.[]
  2. Uma lata de lixo não desempenhava um papel no início do caso Dreyfus?[]
  3. Attali, levando adiante as análises de Foucault, afirma que uma grande parte da história social mais recente da medicina, particularmentc dos séculos XVII e XVIII, não é dominada pelos médicos, mas pelos policiais; uma grande parte do sofrimento não é curado, mas internalizado. Cf. L’Ordre cannibale, Paris, 1979.[]
  4. Na discussão sobre o niilismo, que gosta dc se servir de um vocabulário cru, fala-se antes de “colapso”, de “queda” da metafísica; acredito que essas imagens não tocam na coisa mesma, ao menos não mais. Metafísicas não “caem”, mas amarelecem, se veem infiltradas, estagnadas, tornam-se entediantes, enfadonhas, desimportantes e improváveis.[]
  5. Quanto a esse ponto, é possível encontrar reflexões prévias fascinantes no policial chefe do guilhermismo, Wilhelm Stieber. Ele já praticou conscientemente um saneamento municipal policial, por exemplo, no quesito prostituição, dissimulação entre outros.[]

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