Simone Weil: a totalidade de “ser” humano

nossa tradução

“Você não me interessa.” Eis uma frase que um homem não pode dirigir a outro sem cometer uma crueldade e ferir a justiça.

“Sua pessoa não me interessa.” Essa sentença pode ter lugar em uma conversação afetuosa entre amigos próximos, sem ferir o que há de mais delicadamente suscetível na amizade.

Da mesma forma, é possível dizer, sem se rebaixar: “Minha pessoa não importa”, mas não “eu não importo”.

É a prova de que o vocabulário da corrente de pensamento moderno dita personalista está equivocado. E nesse campo, onde há um grave erro lexical, é difícil que não haja também um grave erro de pensamento.

Há em cada homem algo de sagrado. Mas não é sua pessoa. Tampouco é a pessoa humana. É ele, esse homem, pura e simplesmente.

Eis um transeunte na rua que tem braços longos, olhos azuis, uma mente em que circulam pensamentos que ignoro, mas que talvez sejam medíocres.

Não é nem sua pessoa nem a pessoa humana nele que me é sagrada. É ele. Ele todo por inteiro. Os braços, os olhos, os pensamentos, tudo. Eu não atentaria contra nada disso sem escrupulos infinitos.

Se a pessoa humana fosse nele isto que há de sagrado para mim, eu poderia facilmente furar-lhe os olhos. Uma vez cego, ele será uma pessoa humana exatamente tanto quanto antes. Eu não teria de todo atingido à pessoa humana nele. Teria destruído apenas seus olhos.

É impossível definir o respeito da pessoa humana. Não apenas impossível definir em palavras. Muitas noções luminosas estão neste caso. Mas esta noção aí tampouco pode ser concebida; ela não pode ser definida, delimitada por uma operação muda do pensamento.

Tomar por regra da moral pública uma noção impossível a definir e a conceber é dar passagem a toda espécie de tirania.

A noção de direito, lançada através do mundo em 1789, foi, por sua insuficiência interna, impotente a exercer a função que se lhe confiava.

Amalgamar duas noções insuficientes falando dos direitos da pessoa humana tampouco nos levará muito longe.

O que me impede justamente de furar os olhos daquele homem, se disto tenho a licença e que isto me compraz?

Ainda que ele me seja integralmente sagrado, ele não me é sob todos os pontos de vista, sob todos os aspectos. Ele não me é sagrado simplesmente porque acontece de seus braços serem longos, de seus olhos serem azuis, de seus pensamentos serem quiçá medíocres. Nem, se é um duque, simplesmente pelo fato de sê-lo. Nem, se é trapeiro, apenas enquanto tal. Nada disso deteria minha mão.

O que a deteria é saber que, se alguém furasse os olhos, ele teria a alma despedaçada pelo pensamento de que alguém lhe faz mal.

Há desde a pequena infância até o túmulo, no fundo do coração de todo ser humano algo que apesar de toda a experiência dos crimes cometidos, sofridos e observados, aguarda invencivelmente que se lhe façam bem e não mal. É isso, antes de toda coisa, que é sagrado em todo ser humano.

O bem é a única fonte de sagrado. Não há de sagrado senão o bem e o que lhe é relativo.

Essa parte profunda, infantil do coração, que sempre aguarda ao bem, não é ela que está em jogo na reivindicação. O menino que vigia invejosamente se seu irmão não teve um pedaço de bolo um pouco maior do que ele cede a um móvel vindo de uma parte muito mais superficial da alma. A palavra justiça tem dois significados muito diferentes que se relacionam com essas duas partes da alma. A primeira só importa.

Toda vez que surge no fundo de um coração humano a queixa infantil que nem o Cristo pôde conter – “Por que me fazem mal?” -, há decerto injustiça. Pois se, como acontece frequentemente, eis aí somente o efeito de um erro, a injustiça consiste então na insuficiência da explicação.

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