Schopenhauer (MVR2:277-279) – vontade e intelecto

Jair Barboza

Portanto, quando se diz de uma pessoa: “ela tem um bom coração, mas uma cabeça ruim”; de uma outra, entretanto: “ela tem uma cabeça muito boa, mas um coração ruim”; todos sentem que, no primeiro caso, o louvor em muito ultrapassa a censura; no segundo, o contrário. Correspondendo a isso vemos que, quando alguém pratica uma má ação, seus amigos, e ele mesmo, empenham-se em transferir a culpa da VONTADE para o INTELECTO e fazer passar os erros do coração pelos erros da cabeça; às péssimas desfeitas chamarão de DESLIZES, dirão que se tratou apenas de mera falta de entendimento, falta de ponderação, ligeireza, desvario; sim, se preciso, alegarão paroxismo, momentâneo distúrbio mental e, caso trate-se de grave delito, até mesmo loucura, apenas para isentar a VONTADE de culpa. E, inclusive nós mesmos, quando causamos um acidente ou dano, acusar-nos-emos de bom grado diante de nós e dos outros, de stultitia [insensatez], apenas para esquivarmo-nos da acusação de malitia [malícia]. Correspondendo a isso, no caso de uma igualmente injusta sentença do juiz, a diferença é imensa entre se ele errou ou prevaricou. Tudo isso atesta suficientemente que só a VONTADE é o real e o essencial, o núcleo do ser humano, e que o intelecto, ao contrário, é apenas seu instrumento, que sempre pode ser falho sem que ela esteja implicada nisto.

A acusação de falta de entendimento não vale nada diante do tribunal moral; antes, ela aqui até mesmo traz vantagens. O mesmo acontece nos tribunais do mundo, perante os quais, para livrar um criminoso de qualquer condenação, é em toda parte suficiente transferir a culpa de sua vontade para seu INTELECTO, na medida em que fica comprovado um erro inevitável ou distúrbio mental: pois aí não há maior consequência que no fato de a mão ou o pé terem escorregado involuntariamente. Isto o explicitei de modo detalhado no apêndice “Sobre a liberdade intelectual” ao meu ensaio Sobre a liberdade da vontade, ao qual aqui remeto para evitar ser repetitivo.

Em toda parte, a pessoa que leva a efeito algum tipo de realização, no caso de esta não ser satisfatória, sempre invoca que não lhe faltou boa vontade. Com isso acredita ter salvaguardado o essencial, aquilo pelo que é propriamente responsável, e o seu próprio eu: tal pessoa vê a ineficiência das próprias faculdades apenas como a falta de um instrumento confiável.

Se uma pessoa é ESTÚPIDA, a desculpamos dizendo que não é sua culpa; mas se igualmente quiséssemos desculpar a pessoa que é MÁ, então seríamos objetos de riso. E, todavia, tanto uma coisa quanto a outra é inata. Isso comprova que a vontade é o ser humano propriamente dito, o intelecto, seu mero instrumento.

Portanto, sempre é apenas o nosso QUERER que é considerado como dependente de nós, isto é, como exteriorização de nosso verdadeiro ser, e pelo qual, por conseguinte, somos considerados responsáveis. Justamente por isso, é absurdo e injusto quando alguém quer-nos pedir justificativas por nossas crenças, portanto, por nosso conhecimento: pois, ainda que este governe em nós, somos obrigados a vê-lo como algo que está tão pouco em nosso poder como os acontecimentos do mundo exterior. Também aí, por conseguinte, torna-se claro que unicamente a VONTADE é o íntimo e próprio do ser humano, o INTELECTO, ao contrário, com suas operações que ocorrem com a mesma legalidade que a do mundo exterior, está para a vontade como algo extrínseco, um mero instrumento.

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