VIDE: Dois
TEMA V
ARTIGO 3 – A SIMBÓLICA DO 2 – O BINÁRIO, A DÍADA
No Bhagavad Gita, Krishna adverte ao vacilante Arjuna: “Mas tu, eleva-te acima dos pares de contrários!” pois conseguir ultrapassá-los será alcançar a Mônada suprema, o Grande UM. Entre o Sim e o Não permanece o espírito, entre afirmativo e negativo. “No sim e no não fundam-se todas as coisas”, era uma expressão do místico Boehme.
Jung, estudando a gênese desses pares de contrários, que sempre surgem nos campos do conhecimento – par e ímpar, direita e esquerda, alto e baixo, positivo e negativo, ativo e passivo, essência e existência, atração e repulsão, amor e ódio, máxima e mínima, macho e fêmea -, observa que todo extremo psicológico “contém. secretamente o seu contrário”, ou então se relaciona “de algum modo com este de maneira muito próxima e essencial.” E exemplifica com a doutrina do Yang e do Yin da filosofia clássica chinesa.
Dessa oposição, prossegue ele, surge um peculiar dinamismo. Não há uso sagrado qualquer que não se converta em seu contrário. E quanto mais é extrema uma posição, tanto mais é de esperar sua enantiodromia, sua conversão no contrário. O mais santo é o mais turbado pelo demônio. E em suas análises verificou no campo da linguística exemplos dessa enantiodromia, como no campo das religiões verificou ,exemplos na mitologia, como a versão de um deus que se torna um diabo, como Lúcifer, o que traz a luz, ser, depois, o que traz as trevas.
Só assim se pode compreender que certos ritos religiosos alcancem o orgiástico, em cujos excessos chegam até ao incesto, à prostituição ritual e à conjunção com animais. Temos os exemplos das missas negras, em que Cristo é transformado em símbolo diabólico, comunhões do diabo, pão sacrílego, e o vinho da maldade, ritos no mundo cristão, em oposição contrária à própria religião.
O 2 é o símbolo da dualidade, do binário, da Díade pitagórica. É o símbolo da reciprocidade antagonista, das antinomias, dos contrários.1
O que aqui está, é, no seu substrato (no hipokeimenon, no que está por baixo, no que o sustenta) ser e do ser. Se a posição é, por exemplo, a do materialista, tudo quanto é, vem da matéria, e quando deixa de ser o que é (isto ou aquilo), não deixa de ser matéria e da matéria. As coisas se transformam, mudam-se, geram-se e corrompem-se. Mas o ser continua. Elas são sempre de ser (matéria, ou não-matéria, mas sempre ser).
Há no pensamento de muitas religiões a afirmativa de que do UM veem todas as coisas, que para o Um todas retornam. Se considerarmos bem esta máxima, ela pode ser traduzida da seguinte forma: Tudo que há ou existe vem do Ser, e ao Ser retorna.” Em todos os pensamentos do mundo, há sempre a ideia do retorno.
Há aqui um dualismo inevitável em todo o monismo. E se alguém se colocasse numa posição monadológica, pluralista, admitindo que o universo nada mais é que o resultado de combinações figurativas de mônadas (como os átomos de Demócrito, por exemplo), ainda nesse pensamento, o desaparecimento de um ser este ou aquele, se daria no retorno aos elementos componentes, que deixando de formar esta ou aquela figura, não deixariam de ser o que eram.
Numa ideia criacionista, como a cristã, o Ser Supremo, Deus, dá surgimento, do Não-ser, de criaturas que são marcadas pelo limite, pois elas não são tudo quanto podem ser. O dualismo de ato e potência, que já se fixara nitidamente no aristotelismo, ainda afirma o 2. A homogeneidade suprema do Ser, que é Deus, está ante a heterogeneidade da criatura, e os contrários, Um e Múltiplo, surgem inevitavelmente para estabelecer o binário.
No pitagorismo, sem querer aprofundar a sua simbólica, a díade é inevitável na criatura, que pode ser sempre vista diadicamente, pois é sempre dois, ato e potência, essência e existência, ser e limite, presença e ausência, porque é privada de algo, etc. A díade, assim, transparece em todo o pensamento filosófico, como surge em todo o pensamento religioso, e até nas formas mais simples de apresentar-se.
Ao procurarmos a Unidade, encontramos sempre a Dualidade. A individualidade afirmada é uma separação do que não é ela (ex. eu e não-eu). A antítese apresenta-se inevitavelmente. O que se individualiza, distingue-se do Outro. Para que algo se afirme é preciso excluir. A Lógica Formal é uma lógica de excludência e uma ideia só se torna nítida, distinta, quando se separa e se afasta de outra, que lhe é contrária. A segregatio é inevitável, como o é a dicotomia, a separação, a krisis aberta, Todo ser finito, como unidade, enquanto tal, separa-se de outros.
O dois não é um plural, mas a diferenciação. Por isso Pitágoras dizia que o Um não é número, porque o um, enquanto tal, é apenas ele. Mas comparado a outro já se torna numérico, (de número, numeroso, que vem de nomos, norma, regra).
A polaridade do binário surge em todo o existir. Agente e paciente, positivo e negativo, movimento e quietude, os polos magnéticos, etc., todas essas dualidades polares, extremos específicos ou genéricos, surgem em todo pensamento.
No homem, tomado especificamente, macho e fêmea, o eterno feminino (a anima de Jung) e o eterno masculino (o Animus), as duas ordens energéticas de extensidade e intensidade, etc.
No livro da Gênesis, a criação é binária: a passagem do caos para o cosmos, e a passagem do que antes não era para o que é.
No polemós de Heráclito, no Yang, ativo-passivo e no Yin, passivo-ativo, da filosofia clássica chinesa, nas palavras do Eclesiastes: “considera as obras do Altíssimo; elas são assim duas a duas e opostas uma a outra”, no dualismo zaratustriano (do Zoroastro persa), de Ahura-Mazda e de Ahriman (bem e mal), a dualidade das expressões linguísticas (divergência, diferença, etc.), no Purusha (ativo) e no Pakriti (passivo), dos hindus, no Amor e ódio de Empédocles, nas duas serpentes do caduceu de Hermes Trimegistos, nas duplas divinas de Osíris-Ísis, dos egípcios, e de Baal-Astarté dos mesopotâmios, em toda a parte há sempre uma simbólica da Díade.
Vemo-la simbolizada na cruz egípcia em forma de T, na cruz com as duas linhas, a horizontal e a vertical dos cristãos, que também é símbolo do quaternário (4), no Rei e na Rainha, no Sol e na Lua, nas Trevas e na Luz.
É por isso que o 2, na arithmosofia dos gnósticos, cabalistas, herméticos etc., não só é símbolo da díada, do binário, dos contrários, da oposição, das antinomias, mas também da diplomacia, do equilíbrio dos contrários, como da astúcia, do bifrontismo, etc.
Em toda a natureza vemos a presença dominadora da lei da alternância, que se revela na dualidade da vibração, na dualidade da moção de qualquer espécie, no devir. O 2 é símbolo do devir, símbolo da alternância, símbolo da criatura, da constituição dualística do universo. Podem os fatores serem múltiplos, mas todos podem ser reduzidos à díada. Os vetores podem ser diversos, mas sempre podem ser reduzidos a 2. Por isso dizia Pitágoras que todo o nosso conhecimento é dual, e só conhecemos quando o dois surge, pois, sem a ,oposição, não poderíamos conhecer. Toda criatura pode ser vista como unidade, mas quando podemos conhecê-la diadicamente, começamos a conhecê-la melhor, porque já realizamos a análise. Depois de conhecida diadicamente, o conhecimento da unidade é rico, muito mais rico, porque j á inclui maior concreção.
Em Deus, na teologia cristã, conhecer é ser. Não há aqui o diádico, porque o conhecimento é fronético, é por fusão, porque tudo é de Deus.
Nosso conhecimento exige o desdobramento do cognoscente e do cognoscido, sujeito e objeto. E ao conhecer, temos de separar, e quando conhecemos desconhecemos, porque não captamos fusionalmente (totaliter) o objeto. E o que conhecemos do objeto é separado do que é ele. Desse modo, pode ver-se que todo o processo gnoseológico é sempre diádico. E, como ele, é tudo na natureza, porque a física, a química, a biologia, e todas as ciências não podem deixar de reconhecer que em todo operacional, em todo o processual, em tudo quanto é finito, há o dual, a alternância, o binário, a díada. Por isso, o 2 é o símbolo da díade fundamental da criatura. Toda criatura, para afirmar-se, afirma o 2.
Encontramos a simbólica do dois na arte, na filosofia, na ciência, nas religiões. Toda a vez que o homem quer expressar o diádico, ele lançou mão do 2 como símbolo, e das coisas que o expressa (duas torres das igrejas, janelas duplas, etc.).
Todas as coisas que são duas participam da díade, por isso tudo quanto numericamente é dois é símbolo da Díade suprema, que se revela em todo o pensamento humano e em todas as épocas.
Tudo é e pode ser considerado diadicamente, pois a díada é fundamental ao operativo do nosso espírito. Não podemos compreender o mundo sem o 2, pois cairíamos em aporias insolúveis.
Mas o 2 exige o 3, porque da oposição dos contrários resulta, não só a síntese (tese-antítese-síntese), mas também o resultado da oposição, a relação e consequentemente a série, que daí surge, etc., como veremos ao tratar da simbólica do 3.
- A Díade pitagórica não é apenas a oposição. A Grande Díade, que é a Díade transcendental, é constituída do Ser Supremo como forma (na sua essência e existência), que é UM, e na sua operatio, isto é em sua ação, que tende para realizar algo. Corresponde à dualidade Pai, o Um, como essência e existência, como Vontade, para os intérpretes escolásticos, e o Filho, como Intelectualidade, Logos como operação, que realiza a procissão ad extra, que é a da criação, que se manifesta através da segunda díade, a das procissões ativas e passivas, no terreno da oposição. As procissões intrínsecas, imanentes ao Ser Supremo, as procissões in intra da escolástica, realizam-se no próprio Ser Supremo, sem delimitações. Os dois grandes papéis (daí persona, pessoa) que o Ser Supremo realiza são o da Forma e o da operatio, unidos no Ser, cujo papel de união, de infinito amor, é simbolizado pelo Espírito Santo, o que nos permite compreender porque a Trindade cristã é três hipóstases em Um só Ser. Este tema, que é objeto da Teologia, é nos livros correspondentes devidamente estudado, não só em face do pensamento cristão como em outros setores do pensamento religioso. No campo da filosofia, podemos dizer que o Ser Supremo é a sua própria forma, pois como existente e como essente é o mesmo, pois nele se identificam existência e essência. Mas o Ser é imutável na sua essência e na sua existência, pois é tudo quanto pode ser, opera, realiza uma ação, que é a operação, que é ainda ele. A operação e a forma se identificam, pois é a operação infinita do Ser Supremo. Como há aqui fusão absoluta, o símbolo do amor serve para apontá-lo. Nas religiões, esse papel é indicado pelo Espírito Santo, no catolicismo; ou Brahman, no pensamento hindu.
Assim a Díade transcendental de Pitágoras não deve ser confundida com a díade imanente que se manifesta no antagonismo das oposições. A primeira é a Grande Díade, e a segunda é a simbolizada pelo 2. Compreende-se assim a série pitagórica. O 1 gera o 1 e este gera o 2. O Um supremo (Pai) gera o Filho, que é ainda ele, Um, e este gera o 2, a oposição da criação, porque a criatura é um ser que não é tudo quanto pode ser o ser. Nela há uma deficiência, pois a ela não podemos predicar todos os atributos predicáveis ao Ser Supremo. Ela é sempre e fundamentalmente 2.[↩]