O termo ser, como sinal verbal, aponta a um conceito. Mas esse conceito, pela simplicidade com que se reveste para nós (simpliciter simplex), é o seu próprio conteúdo. No entanto, ele aponta, por sua vez ao que entendemos por ser; ele “representa” o ser, que é o grande simbolizado por todos os entes.
De que é símbolo esse conceito de ser?
Ora, vimos que o ser é um predicado comuníssimo, simplicíssimo, e essencial de todas as coisas, porque podemos considerar todas as coisas por uma semelhança, pelo menos, a de serem.
Poder-se-ia dizer que o conceito de ser é o mais abstrato de todos os conceitos? E não é assim que geralmente se considera?
E não será o conceito de ser o mais concreto de quantos há? Não predicamos o ser a tudo?
A tudo quanto predicamos, damos-lhe ser; a todas as notas individuais, particulares ou universais. Podemos realmente abstrair o ser desta nota para analisa-la, mas jamais separamos o seu “ser” do ser, porque quando o predicamos, predicamos o próprio ser.
Dizem muitos outros filósofos que o ser é o conceito mais rico e também o mais pobre. Podemos predicá-lo a tudo, mas dele pouco podemos dizer. Inclui tudo o que é e tudo o que pode ser, este conceito de tanta extensão e de tão pouca compreensão.
Mas estamos aqui apenas dentro de uma visão racional. Esquecemos, no entanto, o mais importante: é que o ser não é apenas um conceito, e se dele, conceitualmente, há pouco a dizer, se dele silenciam os nossos esquemas intelectuais, dele fala, Palpitante, expressiva, toda a nossa afetividade, toda a nossa consciência, tudo quanto em nós é ato, actividade, desejo, promessa e certeza.
O ser é uma presença da qual participamos. “Se há diferença entre as qualidades, não há no ser dessas qualidades”, exclama Lavelle. “Sua heterogeneidade não os impede de ser da mesma maneira, no mesmo sentido, e com a mesma força. Pois seu ser consiste em sua inscrição comum no interior do mesmo todo, do qual elas expressam um aspecto particular inseparável do todo dos outros. O ser não se divide, porque é o todo, dado em cada parte, e apresenta com ele e, nele, por mais longe que se possa olhá-lo, como uma reunião de partes, em que cada uma possuiria anteriormente, em si, uma existência independente”. (“De l’être”, p. 38)
Essa presença do ser nos cerca e nos inclui. Dele não podemos evadir-nos, nem o podemos negar, mesmo quando tentamos negá-lo. Antecede-me e sucede-me, e sinto-me como testemunha afirmativa dele. Afirmamo-lo mesmo quando negamos, como vimos com os juízos negativos. O ser da tensão está na relação das partes, nelas, e no todo. Lavelle defende a univocidade do ser, seguindo a linha escotista. Mas, dialècti-camente, não há exclusão da univocidade e da analogia, porque a analogia a inclui, como ainda veremos.
O ser, como produzir-se, é sempre ser como poder de produzir, e é sempre ser como sistência.
O ser, como produto, é sempre ser como existência, é sempre ser como multiplicidade existencial.
É o ser que dá o ser ao ser do existente. Onde o ser, está a relação; ambos inseparáveis. O ser não é apenas um conceito, o ser é uma potência universal.
Os objetos são marcas e fronteiras; graus de intensidade e de extensidade do ser, que é ser no devir de seus relacionamentos intensivos e extensivos, e de suas modais.
O ser enquanto ser não têm fronteiras nem marcas, mas nele se dão, nele há marcas e fronteiras (Vê-se que valioso é aqui a diferenciação entre os verbos ter e haver, entre ser e estar, riqueza da nossa língua, como também o é da espanhola).
Nós existimos numa cooperação de todo o ser. Como seria ser sem o ser? E sou porque o ser me cerca, me ampara e coopera para que eu seja.
O ser é potensão. Cunhamos esta palavra, que dela necessitamos para esclarecer tema de tal valia. Potensão, a tensão que pode. O ser é a tensão que pode, que é também o ato híbrido existencial, impregnado de potência, de possibilidades, da multiplicidade proteica de todo o existir, mas é sobretudo o que antecede em dignidade e poder, o grande simbolizado, que é referido pela potência criadora ativa, mas que está acima de toda delimitação.
E mundo é o que acusa, o que aponta a presença do ato, na multiplicidade das coisas, dos estados, que nascem da participação, mas que afirmam, pelo limite, o que o ultrapassa, a potensão, fonte e origem de todo o existir, suporte de todo o existir.
E é nessa multiplicidade dos estados que se dão, que há, na potensão que nos surge, o tempo, uma presença sempre atual do sucessivo, que conceitualmente rompe o estaticismo da razão, que nada pode dizer sobre ele, além de que é enquanto não é, e não é enquanto é.
Ser é portanto; é essa tensão que pode, que revela o tempo que está nele, a sucessão do acontecer, do que há, do que nele está. E é esse acontecer que o dicotomiza num futuro, que racionalmente ainda não é, e num passado que deixou de ser, para reduzir-se ao presente, sempre fugidio, mas sempre presente, sempre que é e não é, porque não sendo é, sendo não é.
Mas o tempo, que nos surge como uma presença da sucessão, separa-nos o passado e o futuro como se eles pudessem negar a sua presença também, só por que a razão não o capta.
Mas examinemos uma teoria apresentada em 1846 por um filósofo alemão, ainda desconhecido, Carus, que Klages nos revela, agora, em pleno século XX, e que nos fala sobre o ser epimeteico (o passado) e o ser prometeico (o futuro), que o estaticismo da razão não captou, mas que a intuição nos revela aos poucos, até que possamos racionalizá-lo a posteriori, pela razão supra-racional, que a dialética nos pode revelar, essa libertadora das armadilhas que a razão dos racionalistas criara para si e que nelas se prendera.
Ouçamos Carus, citado por Klages:
“Assim as primeiras divisões do germe vegetal indicam a natureza e a posição das folhas, futuras, e as folhas indicam a natureza e a posição da corola; também a disposição primeira da flor apresenta o cuidado definido de uma forma, de onde a planta surge, inteira, no começo de sua vida, e que ela conservou em sua memória, bastante bem, embora inconscientemente, para poder reproduzi-la no ponto culminante de sua vida, a saber: a forma do germe. E até se observarmos de mais perto a vida, vemos que de toda maneira deve persistir em sua tendência uma reminiscência inconsciente do que era antes, sem o que não se compreenderia como, depois de ter percorrido fases tão variadas, chegasse ao ápice de seu crescimento, alguma coisa que pudesse repetir exatamente a forma do germe de onde seu desenvolvimento tomou nascimento; por outro lado, reconhecemos que deve existir, na vida, um pressentimento definido, embora inconsciente, do fim de sua evolução e de seu esforço, sem o que a preparação regular de certos fenômenos, que não constituem em si mesmos senão períodos de transição, e estão sempre submetidos a fins mais altos, seria totalmente inexplicável. Quanto mais penetramos em todas essas coisas, melhor vemos que uma firmeza extraordinária, o sentimento de profundidade do que foi, e o pressentimento do que vem, expressam-se aqui de maneira inconsciente; quanto mais nos persuadimos que tudo quanto chamamos, na vida consciente, memória e recordação, e mais ainda tudo o que chamamos nesta mesma região previsão e presciência, é ultrapassado amplamente pela firmeza e segurança, com as quais, na região da vida inconsciente, esse princípio epimeteico e prometeico. . . se manifesta até sem nenhuma consciência do presente”.
Essa memória vital de que fala Klages coloca-nos ontologicamente uma nova maneira de captar o ser. O ser epimeteico e o prometeico não devem ser confundidos com uma mera re-memoração. Há uma significação nos fatos que ultrapassa a mera rememoração.
Assim também o tempo, o grande simbolizado por todas as coisas do mundo tetradimensional, — pois todas, por se darem no tempo, são dele símbolo, — é, por sua vez, um símbolo do ser e nos aponta, ao suceder dos fatos, o epimeteico e o prometeico de todo o existir.
O tempo é interior ao ser, e não o ser interior ao tempo. Por isso o tempo não é uma passagem entre o nada e o ser, porque o nada não é, e não poderia ser fonte de ser.
Duvidam muitos da universalidade do ser, devido à oposição entre presente e passado, no qual parece que o ser se abismou, como nota Lavelle.
Mas como poderia ter o nada a eficacidade de ser? Se o tinha, deixava de ser nada para ser ser, pois o ser, aqui, como potensão, como tensão que pode, é eficacidade. Por entre o constante fluir, o suceder do que há e do que está, o ser é um continuum, sempre ele mesmo, pois se entre um modo de ser e outro se intercalasse o nada, jamais surgiria um novo ser, porque o nada não teria eficacidade de ser, como já vimos. Portanto, sentimos o ser como um continuum, e o cinemático do existir, que nos aponta uma e outra forma de existência, dá-se no ser.
Portanto, o ser não se opõe ao devir, nem o devir se opõe ao ser. Não é o devir uma síntese de nada e ser, mas apenas uma síntese do epimeteico e do prometeico, (uma modal como o vê Suarez, e em breve estudaremos). Por isso cada momento do ser é síntese, como também o via Hegel, entre o ser indeterminado e o determinado, pois cada instante é ato e cada. instante é a perfeição de uma potência, que se atualiza, que se realiza plenamente dentro do seu esquema tensional.
O que foi não é apenas nada, pois se fosse nada, como poderia ter sido? Se teve eficacidade de ser, como o ser perderia a si mesmo para tornar-se nada, pois o ser, que é proficiência e eficacidade, para tornar-se nada teria que ter em si o nada como potência, e esse já o teria destruído. Portanto o passado é. E o futuro, como seria nada se pode atualizar-se? Se encerra o presente a potensão de vir-a-ser, o futuro já é em forma potensional?
Portanto há formas de ser:
O presente é a síntese do epimeteico e do prometeico, por isso é hibridez de ato e potência; de ato, na perfeição da potência epimeteica; de potência, do prometeico.
Portanto, o tempo é o instrumento da nossa participação plena com o ser.
E o ser é primordialidade de tudo, porque a primordialidade é sempre afirmativa. O ser é inascível, pois do contrário haveria um nascimento do nada para o ser. Ele não tem fonte e não tem fim, pois não se tornaria nada. O ser é primordialidade, e os entes são a sistência do ser prefixado. O ser, sem princípio nem fim, enquanto ser, não é tempo. Pois o tempo, que nele se dá, aponta apenas a prefixação do acontecer. Ele é eternidade.
Não há, portanto, um anterior nem um posterior ao ser, nem tampouco um aquém nem um além. O ser é mínimum porque abaixo dele não há ser, apenas nada. Nem além dele, porque um super-ser ainda seria ser, portanto é um maximum.
Maximum e minimum são os extremos dialéticos dos opostos que nele coincidem, como o já mostrava Nicolau de Cusa.
O epimeteico é, e o prometeico é. E a síntese do tempo é. O tempo está no ser e todo o crescimento, no ser, não é um crescimento do ser.
O tempo é um absoluto e um relativo. Como síntese é um relativo, mas, como presença no ser é absoluto, porque sempre o tempo é, porque o ser, por eficacidade, é, e, portanto, prefixa-se no relacionamento de si mesmo, o que na “Teologia” será plenamente esclarecido.
O ser é universal, proficiente e único, unívoco em toda a sua plenitude ontológica. A equivocidade vamos encontrá-la no ôntico finito. Mas como este se dá no ser, e é ser, o ser é análogo no ôntico, e unívoco no ontológico.
Portanto, empreguemos agora a nossa dialética. Não é um esquema abstrato como o querem tornar os abstratistas. É o ser, concreto, e não puro fantasma; é a concreção suprema. Não é deficiência, mas proficiência; é plenitude, não por que é uma deficiência cheia, mas uma proficiência que não se esvazia nunca. O ser é onde se dá. O que existe participa do ser, e é ser. Os seres não se separam por rupturas do ser, pois os limites participam do ser, e são ser. Os seres não se separam por rupturas do ser, pois os limites e fronteiras, como bem nos mostrou Hegel, são dialeticamente o limite de um e o principio de outro. As fronteiras separam aparentemente, mas as fronteiras são marcas que simultaneamente afirmam e negam, um e outro dos lados. O ser não é abstrato; o ser é concreto.
O fenômeno é ser e a relação não nos afasta do ser. Todas as coisas estão relacionadas entre si. Eu me relaciono com todo o universo, pois todo o cosmos, neste momento, me implica, me cerca, desde aquela longínqua galáxia, que se esconde nas trevas distantes, como este meu corpo, que ora sinto e vivo. Posso exclamar que também sou como aquela galáxia é, como o meu corpo, como é também este meu ato de exclamação. Nada há fora do ser e nele me fundo.
E porque tudo se conexiona? Porque tudo precisa de tudo, e o ser é a voz do ser que fala em tudo; que fala através do afã de todas as coisas; que fala nesse suceder, nesse querer infinito de mais, nesse desejo búdico de fusão com ele, quando libertados já de todos os limites e de todas as fronteiras.
Onde o ser, aí a relação, e a relação está no ser. O ser desliga tudo da relação e a relação desliga aparentemente o ente do ser. Pelo conhecer intelectual, captamos as relações, mas, pelo ato vivencial da fronese nós as ultrapassamos.
Mas há partes no universo, dizem. Mas onde estão essas partes? Por acaso se refugiam elas no não ser? Não se apresentam no ser que as contém, e que é elas?
A análise do ser é inesgotável, porque a análise do concreto é sempre inesgotável. Nunca diremos tudo que podemos dizer de alguma coisa.
Há hierarquias onde há entes, ser prefixado, não no ser que é, de per si, supremo.
Nele, os valores opostos coincidem, os quais nos entes se separam.
Vê-se, pois, que o papel da dialética não é apenas unificar o múltiplo, pois o singular e o múltiplo são inseparáveis; nem dividir o um, mas mostrar como a multiplicidade, em vez de destruir a unidade, a requer, e atesta de qualquer forma a eficacidade onipresente de sua operação.
Multiplicidade e unicidade coincidem no ser, onde nele se identificam. A multiplicidade testemunha a unidade.
O que tem ser não o tem como qualidade, pois a qualidade é ser, e não o ser uma qualidade. Não há lacunas nem rupturas no ser, já vimos.
Por isso o ser é infinito em compreensão e em extensão, e não apenas em extensão.
A qualidade vale pelo contraste com outra. Não tem uma realidade original, mas vale pela oposição. As qualidades pertencem ao mundo da relação, que surge das modalidades da reciprocidade dos opostos, como no cronotópico da intensidade e da extensidade. O ser não é relativo; nosso conhecimento é que o é. Olhai algo à distância, aquela montanha. Ela é em si o que ela é, mas para nós, de onde estamos, ou é apenas uma mancha cinzenta ou nos dá um panorama que varia segundo o nosso relacionamento posicional.
E o noumenal, e o que fica além da nossa consciência? Nele afundamos a nossa consciência, e o fenomenal é apenas do intelecto que separa, mas a afetividade profunda nele se fusiona pela mais elevada fronese da existência, ao ultrapassar a pré-fixação, como na beatitude de que falam as religiões e a mística.
O ser, por isso, suplanta o abstrato e o concreto. Nós o descobrimos ao nos descobrimo-nos nele. E nele vivemos, não o tempo intelectualizado da razão, mas o tempo vivido, que já é um vencer do tempo e um tanger da eternidade.
E tudo isso já não nos faz pensar na ingenuidade de querer aumentar abismos, no querer aprofundar demasiadamente a crise entre a ciência, a filosofia e a metafísica?
Não é isso uma revelação de um desejo acósmico de ruptura, quando ela não se pode dar no ser que tudo inclui?