O POSSÍVEL — O REAL E A REALIDADE
Considerações prévias
O que há de evidente e patente para nós é o ato de sermos, cuja afirmação é apodíctica. Não pode nossa inteligência alcançar nada além do ato, que a tudo antecede. Podemos chegar a ele, operatoriamente, através do exame da cadeia causal ou meramente cronológica do acontecer, ou pela pathencia (vide pathos) do nosso existir, mas nos é impossível duvidar da sua prioridade. Porque, do contrario, teríamos de aceitar o nada como primordial, o que é absurdo.
Essa certeza é evidente (ponto arquimédico) e o ato, em última análise, aceito como primeiro, primordial e arquetípico, é incondicionado.
Quer consideremos o todo (como unidade ou não), temos de aceitar sempre o ato, e este, como primordial, como incondicionado, portanto absolutamente livre, anarchos, como liberdade absoluta e como liberdade e absoluto, por não ser causado, nem limitado por qualquer outro.
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O eu é uma atualidade, e ele nos oferece a pathencia vide pathos) do ato.
“É preciso agora ter em conta que um ser vivo, ao viver, só se estende naquilo, só pode desenvolver-se realiter em direção àquilo, só pode atualizar aquilo que, “no fundo é já”, que “potencial e implicitamente é já”. E prossegue Maximilian Beck (“Psicologia” p. 150, em diante): “Entre os seres vivos por um lado e seus momentos explicativos por outro, flutua, contudo, uma tensão qualitativa, chamada, no caso dos seres corporais, “instinto”, e, no dos seres anímicos, “vontade”, “impulso”. O ser ‘vivo é, potencialmente, a totalidade de tudo aquilo que, atual, explicativa e realiter, é apenas parte, sendo, por conseguinte, sempre, e em primeiro lugar, um dos seus momentos explicativos. Na forma da implicação é sempre mais que aquelas determinações por ou nas quais se realiza no caso respectivo.
Pois elas são determinações difusas, são separadas: uma só é esta, outra só aquela determinação. Enquanto o ser vivo se realiza nelas, estendendo-se em cada uma à totalidade de todas as outras: impulsa, tende, quer em toda atualização individual ou realização individual em direção ao desenvolvimento total daquilo que é, na forma da implicação, a forma da separação.
Experimenta como ser vivo corpóreo, “sente” como ser anímico em toda realização particular de sua essência o seu “instinto”, o seu tender, a sua vontade, o seu impulso vital para o estender-se total, não apaziguado, insatisfeito”.
O que o eu é (implicitamente) só pode ser devir (explicitamente) ao entrar numa relação atual com o mundo. (Só em contato com o mundo se desenvolve o eu). Os atos do eu são, por assim dizer, as atualizações das diversas perspectivas de relação com o mundo objetivo, que atuam predisponentemente, atualizações que se expandem, emanadas da potencialidade (emergência).
O eu devêm o que é, a saber, projeção microcósmica deste, do mocrocosmo, ao vivê-lo como aquilo que lhe é peculiar.
O eu “quer” ser o que já é, potencial e implicitamente.
Esta rápida explanação noológica muito nos auxiliará, oportunamente, a compreender os princípios intrínsecos e extrínsecos do ser.
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Observe-se que não excluem alguns escolásticos (os escotistas, por exemplo) a possibilidade de ser a matéria, por si mesma, atual, nem que possam dar-se várias formas substanciais subordinadas. Reconhece Fuetscher que a atualidade da matéria nos é revelada pela experiência. O que julgamos possível é o que não contradiz a ordem universal ou particular dos planos ou constelações tensionais, mas tal não deve ser confundido com a possibilidade, nem muito menos com a potência, pois já exigem eficacidade-real, e que são, portanto, potência-atual.
Toda possibilidade implícita (intrínseca) a uma tensão é uma possibilidade atual, real e potencial.
Quando a possibilidade é explícita (extrínseca), e só se atualiza com a cooperação de outra tensão, essa possibilidade é apenas um possível.
A probabilidade é um grau eminente do possível e da potência.
Por isso nem tudo que é possível é provável. A probabilidade acentua-se quando se acentua a possibilidade maior da potência e do possível de se atualizarem.
A probabilidade é o meio caminho entre a possibilidade e a atualização.
A colocação ontológica desses conceitos, posto esparsamente para a análise, exige o estudo dos conceitos de real e de possível, cujo esclarecimento abre campo para futuras penetrações na temática e na problemática ontológicas.
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O REAL E O EXISTENTE
Considera-se frequentemente como real (de res) tudo quanto se opõe a possível. Considera-se como real o ser atual (e não apenas em potência) o ser que constitui uma realidade objetiva, o que não é puro pensamento (captado ou realizado pelo ato de pensar), sem correspondência extra-mentis.
Neste caso, o real opõe-se extrinsecamente ao nada. É um diferente absoluto deste. Não se pode propriamente dizer que o real mantém uma relação de oposição extrínseca ao nada, por faltar a este realidade, o que tornaria tal relação sem consistência de res. Mas como podemos conceber o nada por oposição ao ser, o nada seria a total e absoluta recusa de ser ao ente, o que dá, portanto, realidade à relação entre o real e o nada, o primeiro como esquema noético, abstrato portanto, mas consistente, e nada, como esquema abstrato noético da recusa de toda prefixação sistencial e, ademais, recusa de toda e qualquer sistência.
Se considerarmos assim, tem realidade tudo quanto é alguma coisa, tudo quanto não lhe podemos predicar a recusa total e absoluta de ser alguma coisa.
Portanto tudo quanto é entitas. isto é, tem a propriedade do que possui o ser, em qualquer sentido e em qualquer grau que seja, é real. é aliquid res.
Colocado neste ponto, real opor-se-ia apenas a impossível, pois o nada é impossível e o que realmente podemos predicar ou apontar impossibilidade é nada (realmente, aqui, refere-se à proposição fundada na realidade da recusa, não no impossível, que não é entitas com perseidade, mas apenas o que conceituamos da impossibilidade, cuja realidade noética lhe é dada pela proporção à realidade recusada).
Se considerarmos que real é apenas o que tem atualidade, excluímos desse conceito o possível. Mas o possível não contradiz o ser. E o possível não pode ser considerado mero nada. Se não é nada, é alguma coisa (aliquid); se é alguma coisa tem entitas, tem ser em um certo grau, ao menos, e se o tem, tem realitas. (Pode o que concebemos possível não o ser; neste caso a não realidade do possível, tomado em si noeticamente, é uma realidade noética, embora falsa. Neste caso a elaboração noética é real, não o é a referência tomada como fato. Ou em outras palavras: há uma realidade noética e uma irrealidade ôntica.
Em “Teoria do Conhecimento”, tivemos ocasião de examinar a posição dos escolásticos e as polêmicas travadas entre eles sobre o real e a realidade.
Se considerarmos que é real tudo quando se põe afirmativamente, em si ou em outro, teríamos uma realidade em si e uma realidade em outro. Um ser de razão seria uma realidade em outro, uma existência em outro, de realidade mais restrita que um ser que tivesse perseidade, como um ser físico, que seria real-físico, enquanto o primeiro seria real-ideal (ou ficcional, ou conceitual, etc).
O tema da realidade interessa sobremaneira à filosofia moderna, e foi estudado com o máximo cuidado por Nicolai Hartmann, veja nosso resumo em “real e ralidade”.
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REAL E REALIDADE PARA NICOLAI HARTMANN
Reproduzimos a seguir uma síntese realizada por Ferrater Mora do livro “Möglichkeit und Wirklichkeit” (Possibilidade e realidade), onde são distinguidos várias acepções do conceito de real, submetidos à crítica:
“1) O real como oposto ao aparente. Esta significação não pode ser admitida, pois o aparente é também real, já que de outra forma “não seria uma aparência real”.
2) A realidade como atualidade (Wirklichkeit) pode equiparar-se à realidade como existência (Realität). Tal equiparação é duplamente errônea, pois o real (Reale) possui em si também os outros modos de possibilidade real, impossibilidade real, etc. — além disso, podemos conceber uma “realidade essencial ou ideal”, da mesma forma que uma “realidade lógica, ou cognitiva”. A mencionada equiparação é um exemplo de confusão da esfera do ser com o modo de ser.
3) A realidade como atualidade pode equiparar-se com a efetividade “Tatsächlichkeit”. Pois bem, esta última é só “atualidade real”, e exclui por princípio as outras esferas.
4) A realidade como atualidade pode equiparar-se com a existência. Trata-se de uma confusão difícil de desentranhar, pois, como diz Hartmann “o ser real é o mais essencial na existência”. Isto representa uma confusão do modo de ser com o momento do ser. Os modos do ser são do tipo do real e do ideal. Os momentos do ser são do tipo da essência e da existência. E a essência reclama, por isso, o ser real.
5) O real pode equiparar-se com o ativo ou efetivo. Mas isto representaria converter um modo do ser em uma determinação sua.
6) O real pode ser definido como algo que designa a maior • ou menor plenitude do ser (o orgânico como algo mais “real” que o inorgânico, etc). Tal conceito da realidade se aproxima ao sustentado pelos escolásticos, já que faz depender a realidade de um ser, da soma de seus predicados positivos. Confundir-se-ia em tal caso a Wirklichkeit com a realitas. Em outros termos, haveria confusão do modo com a determinabilidade. Mas enquanto a determinabilidade varia, o modo permanece, segundo Hartmann, através de todas as suas possíveis determinações. No modo, como tal, não há gradações.
7) Poder-se-ia equiparar e confundir a realidade com a atualitas, enquanto ato de ser. Mas tal significaria só a realidade de um eidos ou essentia. Não afeta ao modal, e pressupõe um esquema teleológico (o que vai da dynamis à energeia) que não somente não é aplicável a todo o real, mas que exclui o imperfeito.
8) Pode confundir-se realidade com “possibilidade de percepção de algo” e ainda com “o fato de que algo dê aos sentidos “(como ocorre com o segundo postulado do pensamento empírico em Kant). Neste caso, faz-se da realidade não uma maneira de ser, mas um modo de conhecer. Daí por que a ontologia critico-descritiva deva estabelecer claras distinções entre os distintos conceitos do real: realidade lógica, realidade cognoscitiva, realidade essencial, etc, com o fim de não aplicar a uma as categorias que pertencem à outra. A realidade, como existência, seria, assim, um dos momentos do ser; a realidade como algo distinto ou oposto à idealidade seria uma das formas do ser, e a realidade como atualidade seria um dos modos do ser”.
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É o conceito de real uma das maiores dificuldades da filosofia, pois não é matéria pacífica a sua nítida acepção.
Assim se se pergunta se é real Don Quixote, ou Tartufo, ou Karamazov, pode-se responder que não e também sim. Convém, portanto, distinguir, no conceito de real, dois aspectos.
Real, como adjetivo, qualifica e afirma realidade ao que qualifica.
Neste caso, examinemos o que é Tartufo:
1) uma personagem de uma peça de Molière (ficcional);
2) pensamento de Molière, que se objetivou em sua obra; exemplo do espírito objetivo de Hegel);
3) símbolo da hipocrisia religiosa.
Assim Tartufo, enquanto em sisi mesmo, não é real, mas ficcional. É um ser ficcional e, como tal, persiste, não resiste, prefixação imprescindível da sistência que se objetiva. Como ser humano, existente, não é real, mas Tartufo é ainda um pensamento de Molière que se objetivou por meio de sinais que o apontam. Como objetivação de um espírito é real; como símbolo, encerra todas as condições para ter tal caracterização, pois tem notas que repetem notas da hipocrisia religiosa, portanto, como símbolo, é real (ontologicamente verdadeiro, e, por isso, real).
E se tem realidade de símbolo, de espírito objetivado, tem ainda de valor, como veremos na “axiologia”. Portanto para responder à pergunta se Tartufo é real ou não, é preciso primeiramente distinguir para depois responder.
Logo, a qualificação de real não pode ser negada facilmente sem exame.
Vemos que os seres que não existem como corpos, e como tal não oferecem uma presencialidade tempo-espacial, com resistência, consistência, persistência, subsistência, assistência (que se verifica nas relações), desistência, e, ademais, estância, distância, etc, os quais são considerados entes de razão, ou de ficção, ideais, metafísicos, etc, devem ser distinguidos em todas os suas significações para que se apontem o que oferecem e o que não oferecem de real.
Se são seres em si (com ensidade e perseitas, perseidade) a realidade é incontestável.
Se são seres em outro (in alius ou ab alius, com inaliedade, ou abaliedade) devem ser vistos dialeticamente dos seguintes campos:
a) como realização conceitual;
b) se recebem uma significação puramente de sinais;
c) como símbolo de algo real, como realidade eidética ou fática, isto é, como realidade de eidos, ou de acontecer independente do nous humano (extra mentis);
d) como valor decorrente da sua realidade.
Aos primeiros seres que são fisicamente reais e se dão tensionalmente, como uma estrutura, chamemos como reais-físicos; aos que têm realidade tensional (como estrutura esquemática), mas em outros, como reais-reais; deixando as classificações de reais-ideais, aos que são reais em alguns planos, mas surgidos eideticamente, sem separabilidade física; como reais-metafísicos, cs não separáveis fisicamente, mas distinguíveis cum fundamento in re; reais-ficcionais, quando oferecem as condições, como as de Tartufo; e reais-valorativos-objetivos, quando há valor com base real; valoráveis; reais-valorativos-noéticos, quando são apenas valores de valorização.
Com esta classificação, que acompanha as linhas traçadas pelos escotistas, e as nossas da decadialética, evitam-se as inúmeras discussões sobre o caráter de real que se dá à totalidade esquemática de um ser, quando se deve considerar a sua realidade, segundo a sua colocação relacional.
Assim uma alucinação, que não tem realidade objetiva, exterior, tem uma realidade noética, e portanto não pode ser classificada como real nem como irreal, sem que se procedam as distinções que, por analisarem, esclarecem, e permitem uma colocação concrecional, portanto dialéctica, sem os costumeiros defeitos de tantas inúteis discussões que perpassam pelos livros de filosofia.
Não se justifica assim colocar real ante ideal com exclusão, como se processa formalmente. Pois o ideal é real e o real pode ser ideal, dependendo apenas do campo em que é visto, do ângulo em que é tomado, do relacionamento em que se encontra.
Uma ideia não é apenas uma ideia, mas algo que tem coordenadas para a formação da sua realidade ideal. E há realidade nessas coordenadas, que o ideal, depois, significa, aponta.
Portanto, todo ser é real, segundo seus modos de ser e segundo seu relacionamento. Todo ideal é ser, portanto, como tal, é real.
Os conceitos de real e ideal devem ser tomados dialeticamente como “reais-ideais”, em toda a gama da sua escolaridade, sem exclusões, mas concretamente.
Em suma, para nós, a realidade é o nexo do acontecer cósmico: idealidade o nexo do acontecer das ideias. Este, de certo modo, inclui-se naquele, por isso também é real, mas dele se distingue..
Na realidade cósmica, as macieiras, estão aqui, ali, acolá. Na realidade ideal, elas estão englobadas no esquema eidético-noético.
Unir o nexo da realidade ao da idealidade, considerando este como um momento daquele, numa concreção, é o que faz a decadialética.
Desta forma, as críticas de Hartmann incorporam-se à nossa classificação corroborando-a.
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A TRANSCENDENTALIDADE
Na ontologia é costume considerar-se o conceito de ser como um conceito universal, genérico ou específico. Neste caso, ser seria apenas um esquema abstrato das notas universalizantes que têm todos os entes.
Duns Scot opunha-se a essa opinião, afirmando a univocidade do conceito de ser.
O conceito de gênero inclui o das espécies, que entram na sua extensão, no que elas têm de comum, mas exclui o que elas têm de próprio, que é a diferença específica, que permanece fora do conceito, como, por exemplo, homem e cavalo estão implicados no gênero animal, enquanto seres animados, mas a diferença específica de homem, a de ser racional, não a possui o cavalo, que dele é ausente.
Individualmente, o mesmo se observaria, pois um indivíduo, Paulo, que está incluído como ser racional, em homem, não está enquanto louro.
Mas o conceito de ser é diferente, porque ele engloba, não apenas o que as espécies têm de comum, bem como os indivíduos, mas também as diferenças específicas e individuais.
Assim, no indivíduo Paulo, o ser animal é, o ser homem é, o ser louro é.
Como chamam os ontologistas de conceito transcendental aquele que é atribuído aos seres que entram na sua extensão, não somente no que têm de comum, mas também no que têm de próprio, o conceito ser é um conceito transcendental.
Entretanto, algumas observações decadialéticas caberiam aqui.
Se homem pertence, como espécie, ao gênero animal, podemos dizer que todo homem é um animal, mas nem todo animal é um homem, porque homem tem uma diferença específica que o diversifica das outras espécies de animal.
Mas precisamos distinguir: o gênero, como esquema abstrato, construção operatória da nossa razão, e o gênero como real-real.
Esta macieira, aqui, e aquela macieira, ali, e as macieiras dispersas em todo o mundo, topicamente consideradas, estão separadas umas das outras. Mas a forma da macieira é a mesma em todas elas. Todas elas atualizam uma forma da macieira comum, que as distingue das outras árvores. E essa distinção não é uma mera lucubração do espírito humano, porque as macieiras têm, em si, aquele número (no bom sentido pitagórico de plethos, número de conjunto), que as torna, embora quimicamente compostas dos mesmos elementos que as outras árvores, diferentes das outras, o que permitiu ao ser humano classificá-las, segundo normas científicas, como procede, por exemplo, a botânica.
Como série, as macieiras do mundo estão englobadas num esquema abstrato, que é apenas um esquema do esquema da forma concreta da macieira. Há, assim, esquemas eidéticos, esquemas abstratos, construídos pelo homem, e esquemas da forma concreta dos fatos da natureza, que a ciência procura captar.
Pode o esquema abstrato do homem, o eidético, não corresponder totalmente (totaliter) ao esquema da forma concreta do fato (tensão concreta). Assim o que estruturamos abstratamente no conceito macieira não tem tudo quanto é na macieira o seu plethos, que lhe dá a tensão de macieira, e que cabe à ciência estudar.
Assim o nosso conceito de animal, que é um esquema abstrato, contém as notas que encontramos em comum nos animais, mas o animal, enquanto tal, que há também no homem, isto é, como esquema da forma concreta biológica, não se esgota naquele conceito, que é um esquema (intentionaliter) de um esquema (realiter). Neste caso, no animal, perguntamos, como gênero na natureza e não nos esquemas abstratos, não está contido em ato as notas comuns e, em potência, o que corresponde às diferenças específicas?
As diferenças específicas são atualizações de possibilidades que permitem distinguir, diferenciar as espécies, mas elas, como componentes da realidade, estão implicadas no gênero. Tanto o animal podia ser homem que o homem, sendo animal, é também racional. Portanto, ao animal cabia a possibilidade de receber uma alma, como o afirmam as religiões, outorgadas pela divindade, não importa, mas o que importa é poder a animalidade alcançar a hominilidade, por providência divina ou por evolução, ou por outro meio qualquer. E se podia, continha em si, em potência, a capacidade, pelo menos, de receber a hominilidade. E essa hominilidade, em potência, não seria um mero nada, pois se o fosse não se atualizaria.
E aqui se esclarece nossa crítica feita à razão em “Filosofia e Cosmovisão”. Como a razão tem dificuldades para racionalizar a potência, sempre obscura e misteriosa para ela, dando mais atenção ao ato, nos conceitos, que são elaborados operatoriamente, são consideradas, quase sempre, apenas as notas que em todos se atualizam. Ela prefere considerar como diferença específica (que o é na verdade), aquelas que se atualizam em alguns e que, por isso, distinguem a estes de todos os outros.
Esse divórcio entre o esquema abstrato da razão e o esquema da forma concreta dos fatos, criou uma verdadeira crise nas especulações filosóficas, (crisis = abismo, no genuíno sentido etimológico), que a decadialética, pela sua visão global, procura ultrapassar. E para tanto é preciso distinguir os conceitos nos planos e campos em que são aplicados, como nos casos que estudamos, evitando-se, assim, as confusões que daí decorrem, e que obscurecem o pensamento filosófico, em vez de clareá-lo.