Santos Participatio Logica Ontologica

TEMA III
ARTIGO 2 – A PARTICIPAÇÃO NA ORDEM LÓGICA E NA ORDEM ONTOLÓGICA

É comum dizer-se que Platão só considerou a participação no campo das idéias, reduzindo-a assim apenas à participação lógica.

Entretanto, se tivermos um pensamento mais consentâneo com a genuína concepção platônica, veremos que a participação que se dá na ordem das formas, freqüentemente chamada idéias, é correspondente a uma participação na ordem do ser. Como participar da forma é participar do ser, a distinção que se fêz entre platonismo e neo-platonismo (que aceitaria a participação na ordem do ser) é apenas aparente, porque essa dúplice participação surge de uma visualização, dúplice por sua vez, de uma mesma verdade.

Em sua obra “De substantias separatas” Tomás de Aquino assim interpretava a teoria platônica: “No conhecimento da verdade, nossa inteligência usa de uma dupla abstração. Pela primeira, ela capta os números, as grandezas, as figuras matemáticas, sem pensar na matéria sensível. Quando, com efeito, pensamos no número dois ou no número três, na linha ou na superfície, no triângulo ou no quadrado, não se encontra nada em nossa apreensão que indique o quente ou o frio, ou qualquer outra qualidade que possa ser percebida pelo nossos sentidos.

A segunda abstração serve à nossa inteligência, quando ela conhece um têrmo universal sem representar qualquer têrmo particular, quando, por ex., pensamos em homem, sem pensar nem em Sócrates nem em Platão, nem em qualquer outro indivíduo. Poder-se-ia mostrar a mesma coisa com o auxílio de outros exemplos. Admite, portanto, Platão
dois gêneros de realidade separadas da matéria: a saber, as realidades matemáticas, e os universais, que ele chamava espécies ou idéias (formas, eide). Entre ambos há contudo a seguinte diferença: nas realidades materiais, podemos captar diversos (indivíduos) de uma mesma espécie, diversas linhas iguais, por ex.: ou dois triângulos equilaterais e iguais, o que é impossível absolutamente quanto às espécies.

O homem, considerado como universal, segundo a espécie, é necessàriamente único. Também admitia ele que as realidades matemáticas fôssem intermediárias entre as espécies ou idéias, e as realidades sensíveis. Elas assemelham-se às realidades sensíveis, no fato de diversos indivíduos estarem contidos em uma mesma espécie. Por outro lado, elas assemelham-se às espécies no estarem separadas da matéria sensível.”

Através dessa interpretação de Tomás de Aquino vê-se que, para este, as idéias platônicas (formas) nascem da projeção, na realidade, dos objetos correspondentes, não sómente ao nosso conhecimento em geral (como seriam as realidades matemáticas), mas, sobretudo, graças ao nosso conhecimento abstrato. Na verdade, para Platão, as realidades matemáticas correspondem à lei de proporcionalidade intrínseca dos corpos sensíveis, como o sejam as figuras geométricas ou a mera proporcionalidade, como seriam os números em sentido meramente aritmético, isto é, de medida, de comparação.

Esse pensamento platônico, que encontramos disperso em sua obra, é parcialmente pitagórico, sem contudo penetrar mais amplamente no sentido do arithmós pitagórico, que ultrapassa o campo da geometria para alcançar o das matemáticas superiores.

Esses arithmoi já corresponderiam a um estágio intermédio entre os números matemáticos (arithmoi mathematikoi) e as formas ou idéias, que no pitagorismo correspondem a uma tríada superior, que hierárquicamente seria a seguinte : das formas alcançar-se-iam as estruturas ontológicas e, dessas, os arithmoi archai, os números arquétipos, que constituem o ápice da tríada superior.

Como os números matemáticos podem nos dar a estrutura ôntica dos seres, pois nos indicariam a lei de proporcionalidade intrínseca dos seres corpóreos, imitariam eles as estruturas ontológicas da tríada superior, cujo ponto de ligação seriam as formas (eide).

necessidade de salientar esse ponto para uma melhor compreensão da participação em sentido platônico, que Tomás de Aquino considerava como genuinamente neo-platônica, e esse esclarecimento, que por ora propomos, tambem nos auxiliará, por ocasião do exame dos símbolos, para melhor compreensão da sua significabilidade.

E finalmente nos favorecerá para compreendermos, mais adiante, que o pensamento tomista sobre a participação é um pensamento platônico, e ademais parcialmente pitagórico, o que provaremos ainda, embora tal afirmativa, pareça estranha aos tomistas. (Em “Filosofia da Crise”, estudamos este aspecto com mais pormenores, permitindo maior clareza. E no capítulo “A simbólica dos números”, nesta obra, voltaremos a este tema.)

As formas platônicas são. fundadas em estruturas ontológicas.

No mundo sensível, corresponde-lhes as estruturas redutíveis aos arithmoi mathematikoi. Por isso as coisas sensíveis “copiam” as formas.

E como a ação é proporcional ao sujeito da ação, as coisas sensíveis, por serem sensíveis, reproduzem as formas proporcionalmente ao seu ser, que é sensível; e conseqüentemente a estrutura ôntica, que é geométrica, é por sua vez, matemática, e copia a estrutura ontológica, que não é sensível, que é eidética.

Assim todo o ôntico tem uma estrutura ôntica, que é concreta, a qual corresponde a uma estrutura ontológica, que lhe é transcendente, e que pertence à ordem ontológica, à ordem do ser, apenas captada por nós lògicamente, noéticamente e proporcional ao nosso espírito.

Uma estrutura ôntica efectiva-se porque este ser (haec), onde ela se dá, está na ordem do ser, portanto na ordem ontológica, e como tudo o que é (ser) pertence ao ser, no ser se identifica, e pode copiar ônticamente a estrutura ontológica, que é do ser. E tal se dá porque este ser singular (haec) não se afasta totalmente do ser, pois, do contrário, haveria rupturas no Ser, o que colocaria o pensamento em aporias que o platonismo, por sua estrutura filosófica, evita sem escamoteá-las, desde que bem compreendamos o genuíno pensamento platônico.

Assim, entre as formas e os seres do mundo sensível, há uma certa univocidade. E essa univocidade foi presentida por Tomás de Aquino ao comentar o livro décimo da Metafísica de Aristóteles. A éspécie é univocamente predicada da espécie como forma, e da espécie na singularidade, mas distintas por ser incorruptível a primeira, e corruptível a segunda.

As formas platônicas não estão submetidas ao devir, nem ao nascimento, nem à morte, e Tomás de Aquino, na “Suma Teológica” referindo-se a elas, disse: “aos olhos de Platão as formas separadas são absolutas e por assim dizer universais, e nos seres sensíveis, ao contrário, elas se encontram misturadas e limitadas”.

E em “De Divinibus Nominibus”, Tomás de Aquino, referindo-se a Platão, escreve estas palavras: “em tal homem sensível encontra-se alguma coisa que não faz parte da espécie da humanidade, a matéria individual, por ex., e outros princípios desse gênero. Mas, no homem separado. (e nesse caso seria a forma – parêntese nosso) nada se encontra que não seja da espécie da humanidade. Assim Platão chama o homem o homem por si, porque não contém nada que não seja da humanidade…
Pode-se dizer igualmente que o homem separado está acima dos homens, e que é a humanidade de todos os homens sensíveis, já que a natureza humana pertence ao homem separado em toda a sua pureza, que ela dele deriva para os homens sensíveis.”

Vê-se que o pensamento de Tomás de Aquino quanto às formas platônicas é o mesmo de Aristóteles. A nosso ver toda a confusão surge da má compreensão do que consiste a separação, que Platão atribui às formas, e como seria um ponto que não cabe no tema deste livro, deixamo-lo para outra oportunidade tratar, chamando a atenção apenas para o seguinte aspecto : não se deve, fundado nos nossos esquemas, surgidos da nossa experiência sensível, compreender o que Platão estabelece como semelhante ao mundo sensível. A separação, neste mundo, é física, mas no mundo eidético-ontológico, essa separação é apenas marcada pelos limites de uma estrutura ontológica. É formal apenas.

Assim, no Ser, considerado como simplesmente simples, Um, Ser e Bem supremos, as formas distinguem-se apenas formalmente, como estruturas ontológicas, ontològicamente separadas, e não onticamente separadas. Seria atribuir um pensamento ingênuo a Platão (e desse pecado não ausentamos Aristóteles), julgar que ele considerasse as- formas como fisicamente separadas. (NA: Para hipostasiar o homem, teria de lhe dar uma natureza concreta, que é o que especifica o suppositum, o subposto. Se a triangularidade fôsse hipostasiada, ela seria imperfeita, porque existindo concretamente, com natureza concreta, deixaria de ser meramente formal, para ser fisicamente subsistente. Deixaria, portanto, de ser uma formaeidos).

Na verdade, Platão as considerava como estruturas ontológicas no ser, isto é, no ato de ser, mas possibilia (possíveis) na imitação ôntica.

Sua reprodução por mimesis, imitação, nas coisas sensíveis, em nada as modificava, pois elas eram incorruptíveis e eternas, enquanto a imitação, nas coisas sensíveis, é corruptível e transeunte. No primeiro caso, as formas se dão na eternidade e, no segundo, as estruturas ônticas se dão na temporalidade.

Este ponto será por nós oportunamente justificado, e veremos que as idéias exemplares de Deus, aceitas por Tomás de Aquino, são, em suma, as formas platônicas (eide).

Deste modo, as coisas sensíveis participam das formas, mas não é esta participação uma mera composição, porque, na verdade, a forma não está na matéria da coisa sensivel, mas apenas é por esta imitada, ou nela está por imitação. A participação, a metexis, portanto, não se processa por uma composição, nem por ação da idéia sobre a matéria. As idéias ou formas não exercem assim uma ação causal, mas apenas servem de paradigma.

Esta interpretação do pensamento platônico ainda não esgota as possibilidades de outras compreensões que virão oportunamente.

Aplicando-a à simbólica, diríamos que o símbolo não contém em si a forma do simbolizado, mas apenas o imita. Não se dá uma composição entre o símbolo e o simbolizado, mas apenas uma imitação do segundo pelo primeiro. Esta
seria a colocação platônica da relação entre símbolo e simbolizado.

Uma visão muito estreita do pensamento platônico nos levaria a considerar as formas apenas como projeções dos nossos esquemas, da nossa esquematização. Se prestarmos bem a atenção sobre o que temos exposto até aqui, usando dos elementos que oferecemos nesta obra, e em outros trabalhos nossos, poderíamos dizer que, quando se trata do símbolo, há sempre entre este e o simbolizado algo que coriesponde à imitação que, como vimos, se processa, no campo humano, por um excesso de acomodação.

Quando a acomodação é maior que a assimilação, captamos muito menos do que seria normal exigir e, nesse caso, surge uma simbolização inevitável. Mas como em toda adaptação gneseológica, não há uma ausência total de assimilação nem de acomodação, há no símbolo, sempre, uma imitação. O símbolo tem algo que imita o simbolizado,
mesmo que essa imitação seja meramente formal.

Platão distinguia os eide (formas ou idéias) dos eidola (formazinhas, ideiazinhas), que corresponderiam à nossa esquematização, os esquemas noéticos abstratos, que o espírito humano constrói e que correspondem aos eide. E para demonstrar que os eide não são meras projecções de nosso espírito, basta que não os confundamos com os eidola,
e que consideremos que, na sua estrutura ontológica, são eles perfeições do próprio ser, neste imutáveis. Pois tudo quanto existe, existiu ou existirá, tem uma estrutura ontológica, e não podemos admitir que esta estrutura tenha vindo do nada. Ela só poderia estar no ser e, como tal, é com ele coeterna, embora temporária ou transeunte no mundo cronotópico.

Vê-se assim que o pensamento platônico não pode ser reduzido a um mero idealismo, fundado apenas na estrutura do nosso espírito, porque se das coisas podemos, quando muito, alcançar a sua estrutura matemática, podemos compreender que a elas corresponde, ainda, uma estrutura da ordem do ser, da ordem ontológica, a qual nos é em sua essência, desconhecida, e só podemos captar por aproximações miméticas, isto é, de imitação, como são as estruturas esquemáticas de origem noológica (do nosso espirito).

Assim, ao esquema noético, que construímos das coisas, corresponde um esquema concreto, que está nas coisas que, por sua vez, corresponde ao esquema ou estrutura eidética, que está na ordem do ser. Conseqüentemente as formas que estão ante rem, antes das coisas, no Ser, estão in re nas coisas, e post rem em nosso espírito, ou nos esquemas sensíveis da imago ou no abstrato noético da universalidade (no conceito).

Em suma, no pensamento platônico, é preciso distinguir o que passaremos a expor. Se Tomás de Aquino define: “participar como receber de uma maneira particular o que pertence universalmente a outrem”, no pensamento platônico este verbo receber indica uma participação sem própriamente haver recepção, sem composição, mas apenas imitação.

Esta distinção se torna necessária, porque muitas vêzes, no pensamento humano, sobretudo no que se refere às religiões, vemos a admissão de que o símbolo, como participante do simbolizado, recebe este, e com ele se compõe, o que é própriamente a característica da idolatria (fusão do símbolo com o simbolizado).

Se admitimos que essa participação se processa no genuíno sentido pitagórico, fica afastada a idolatria, muito embora surja aí um problema que é o seguinte : como se dá esta participação do sensível com as idéias? Parece surgir aqui um abismo que marca uma separação inflanqueável. Prosseguindo na análise do tema da participação, este problema encontrará a sua solução, o que veremos oportunamente.

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