Santos Participatio

TEMA III
ARTIGO 1 – A PARTICIPAÇÃO

Se não há uma adequação completa entre símbolo e simbolizado, a ponto de se identificarem, deve haver entre ambos, para ser aquele adequado ao segundo, um ponto de identificação formal, formalidade que de qualquer modo, se atribua ao primeiro e que pertença ao segundo.

outro aspecto importante entre símbolo e simbolizado. É que o segundo é calado; dele não se fala directamente, mas por intermédio de outro que o aponta, que é o símbolo.

E se deixarmos por ora de examinar o por que desse silenciar sobre o simbolizado, para apenas considerar o como se dá, verifica-se fàcilmente que há entre símbolo e simbolizado uma participação, pois, em parte, ambos se identificam. Essa participação revela um participante, que é o símbolo, e um participado, que é o simbolizado. E essa afirmação é evidente, pois ao examinarmos os símbolos, veremos que a formalidade que a este podemos predicar, é participada em certo grau pelo participante, mas que é atribuiria ao participado (simbolizado) num grau mais elevado.

Este ponto importantíssimo para a boa compreensão de nossa maneira de colocar e ver o símbolo, obriga-nos a estudar o tema da participação. De seu esclarecimento surgirá a luz que nos iluminará a simbólica, e nos permitirá aplicar o nosso método dialético-simbólico, capaz de trazer para o mais amplo conhecimento as grandes contribuições religiosas, que pareciam, até aqui, para muitos pelo menos, completamente alheias ao campo do saber, epistêmico.

Poderemos ver que há um conhecimento muito mais profundo nas religiões, conhecimento que nossa época sem desprezou, por julgar que as religiões fôssem apenas um repositório de crendices e superstições sem maior fundamento e não o grande e profundo conhecimento velado, um conhecimento que abre um caminho místico, um caminho que a simbólica oferece para penetrar nas grandes sínteses e no grande simbolizado, que surge em todas religiões. E ademais, o caminho que ora oferecemos também nos permite compreender todas as crenças, e notar que há nelas uma grande heterogeneidade de símbolos, mas que se referem a um conjunto de formalidades, que são os atributos, por sua vez, de um só e grande simbolizado.

A PARTICIPAÇÃO

Referindo-se aos estudos dos platônicos e dos pitagóricos, afirmava Aristóteles na “Metafísica” (L.1) que não haviam os segundos mostrado como os seres se dão por imitação dos números, nem os primeiros como eles se dão por participação.

Acusava-os, assim, de haverem esquecido de tratar de um ponto importantíssimo, do que não os absolvia. Posteriormente, Tomás de Aquino mostrou que essa queixa de Aristóteles era infundada quanto aos platônicos, embora a aceitasse quanto aos pitagóricos.

Nós, por nossa vez, mostraremos que ela era infundada também quanto aos pitagóricos, porque a imitação, a mimesis pitagórica, que se dá através do arithmós, processase como a participação, e a fundamentação desse processo só era conhecida dos pitagóricos de grau mais elevado, razão por que Aristóteles não a conhecia.

Deixando de lado a discussão que se trava entre os estudiosos da escolástica, quanto ao genuíno pensamento platônico, e se se pode considerar o pensamento neo-platônico como congruentemente adequado ao pensamento do mestre de Aristóteles, desejamos’ apenas salientar que é preciso considerar Platão, não segundo o perfil que de suas idéias traçou Aristóteles, como o fêz no citado livro da Metafísica, mas segundo a estruturação que hoje somos capazes de fazer do verdadeiro pensamento platônico, como já o temos feito em nossos livros. (NA: Em “Teoria do Conhecimento”, “Ontologia e Cosmologia” e “Filosofia da Crise” abordamos e esclarecemos o nosso pensamento sobre a filosofia de Platão.)

Participar vem do latim participare, e de participatio, participação. Etimologicamente vem de capio, tapera, que dá cipere e de partis, parte, parte cipere, sinônimo de recipere. Em seu sentido etimológico, participar é receber de outrem algo. Mas o que é recebido é recebido não totalmente (totaliter), pois totaliter recipere seria receber em totalidade algo (áliquid). É intuitivo que o conceito de participar implica tem receber parcial de algo (áliquid) de outro (ab alio). O que participa é o participante, o qual participa do participavel (participabile = o que pode ser recebido) de outro, o participado.

Participação seria o fato de participar o participante do participável do participado.

Estabeleciam os neo-platônicos um adágio que foi posteriormente muito usado pelos escolásticos, que é o seguinte: “o que é recebido é recebido segundo o modo de ser do recipiente” (quidquid recipitur ad modum recipientes recipitur), que, por sua vez, poder-se-ia, como na verdade foi feito, empregar-se para a participação do seguinte modo: “Tudo quanto é participado em algo, o é, nele, segundo o modo de ser do participante, pois ninguém pode receber acima de sua medida” (Omne quod est participatum in aliquo est in eo per modum participantes; quis nihil potest recipere ultra mensuram suam”).

Em suma, se alguém participa de alguma perfeição, dela participa segundo o seu modo de ser, isto é, na medida em que é capaz de participar, no grau que é capaz de receber. E o que marca esse grau, essa capacidade, é o próprio recipiente, o participante. Um exemplo permite esclarecer. Numa sala, onde é exposta uma conferência sobre determinado tema, os ouvintes participarão do mesmo na proporção da sua capacidade de participantes. Desse modo, a participação, como fato de receber, será proporcional ao, participante. O participado pode ser de maior grau de perfeição, mas a participação, por parte do participante, dependerá do grau deste.

Esse modo de entender do neo-platonismo foi aceito por Tomás de Aquino, e nenhuma objecção se poderia fazer aqui.

Por outro lado, evidencia-se desde logo que o conceito de participação aponta que o participante recebe ou participa de um participável, que pertence a outro em grau mais elevado, do qual o participante apenas participa.

Neste caso, o participável não é do ser do participante, mas sim do ser do participado. Apenas o participante participa de algo que o participado tem em plenitude.

No símbolo verificaríamos o que segue: o símbolo é um participante que participa do participável de um participado, que é por ele referido, que é por ele simbolizado. Mas é esse grau de participação um ponto importantíssimo. Se considerarmos este homem, José, como símbolo da humanidade, e ele o é, poderíamos perguntar : em que grau participa ele da humanidade?

Ora, a humanidade não é uma entidade que seja seu próprio ser, (esse suum esse), pois a humanidade não é um subsistente de per si, um ser que exista fora do homem. Neste caso, a humanidade está totalmente contida neste homem, José. Onde estaria então a sua participação?

Na verdade não haveria participação de qualquer espécie se José fôsse o único ser humano. Se todos os seres humanos houvessem perecido, José seria a humanidade, dizem alguns. Esse argumento poderia surgir como uma objecção ao nosso pensamento sobre a participação do simbolizado pelo símbolo. Contudo não procederia, porque José não seria ainda a Humanidade, se ele fôsse o único homem, a humanidade ainda vivente, não excluindo os outros que o antecederam, pois José, se é o único homem vivo, não é o único ser que “foi” humanidade. A humanidade, se nesse caso tem apenas um representante José, continuaria sendo, na ordem do ser, como já vimos na “Ontologia”, uma perfeição que se atualizou através de seus representantes.

Tais aspectos nos mostram, portanto, que há maneiras diversas de se realizar a participação. E como ainda não palmilhamos todos os caminhos, neste sector, que devemos percorrer para melhor esclarecimento deste tema, quanto à simbólica, seria precipitado, desde já, estabelecer uma teoria da participação, segundo nosso modo de ver, sem que, prèviamente, estudemos o pensamento da filosofia clássica sobre tema tão importante.

Na filosofia medieval, o que é por essência é causa de tudo o que é por participação. Assim, o que é por essência do gênero é participado pela espécie. Na definição clássica “homem animal racional” este participa da animalidade. A primeira é gênero, e a segunda, diferença específica, que é da essência humana, mas que não é exclusivamente dela, pois a racionalidade é, por sua vez, atribuída a outros seres, como os anjos, ou a divindade, que a teriam em graus mais elevados, e em grau absoluto a última.

Entre as diversas espécies de participação que se possam estabelecer, teríamos a participação por composição. Esta participação se fundaria na dualidade de um recebedor (participante), e de um elemento recebido (participável). Neste caso, participar seria possuir algo que foi recebido. O que é recebido o é segundo o modo de ser do recipiente. Em tal caso, o recebido toma a modalidade do sujeito recebedor. Se o recebedor é menos perfeito do que o elemento que ele recebe, este terá os limites próprios do recebedor.

Portanto, na participação por composição, há uma limitação. Esta limitação, ao primeiro olhar, parece verificar-se em todas as espécies de participação; e dizemos parece, porque há participações sem esta limitação, como ainda veremos.

O conceito de limite, desde que não seja considerado dialeticamente, pode colocar-nos em uma verdadeira aporia, pois ao considerarmos que, na participação por composi-
ção, há uma limitação, esta é por sua vez participada, o que nos obrigaria a desdobrar esta participação em duas, participação por limitação e participação por recepção.

Então, na participação por composição, o recipiente é menos perfeito do que o que é por ele recebido, e o recebe apenas como parte, pois não pode recebê-lo sem limitá-lo.

Vê-se claramente que é distinguível a composição de a limitação, embora a composição seja um elemento essencial dessa participação. O que é importante salientar aqui é que a limitação não surge pròpriamente da composição, mas do sujeito receptor, porque nem toda composição é uma participação.

Outra espécie de participação é a participação por similitude ou por hierarquia formal.
Neste caso, a essência, que é participada, não se encontra no participante na plenitude absoluta do seu conteúdo formal.

Essas duas espécies de participação, que têm sido objeto de estudo por parte dos escolásticos, na verdade não se excluem totalmente.

Outras espécies de participação serão por nós oportunamente estudadas, bem como faremos análise dessas duas primeiras, que acabamos de expor, mas antes de estabelecêlas, desejamos realizar uma rápida visão das diversas maneiras de compreender a participação na filosofia clássica.

Aristóteles admitia que a espécie participa do gênero, e que o gênero é atribuído à espécie por participação. Esta afirmativa nos vem de Tomás de Aquino. Na verdade, Aristóteles sempre recusou admitir que a espécie participasse do gênero, pois só admitia participação, quando se desse a união de elementos distintos, o que o levava a recusar uma relação de participação entre o gênero e a espécie, pois, fundado numa participação apenas de composição, não se daria a unidade da substância, a qual seria, em tal caso, apenas uma composição de gênero e espécie.

Este aspecto é de capital importância nos estudos teológicos, pois o homem não é concebido apenas como uma composição de animalidade e racionalidade, como se no
homem se desse a conjunção de dois elementos, o animal e o racional. O racional já contém a animalidade, e a essência humana é considerada como uma unidade de simplicidade, e assim Tomás de Aquino empresta identidade substancial entre gênero e espécie.

E como surgem aqui diversas dificuldades, Tomás de Aquino explica da seguinte maneira: “participar é por assim dizer receber uma parte. Quando um ser recebe de maneira particular o que pertence a outro de maneira universal, diz-se que dele participa. Assim diz-se que o homem participa do animal, porque ele não possui a razão de animal, segundo toda a sua generalidade. Pelo mesmo motivo, Sócrates participa do homem. Da mesma forma o sujeito participa do acidente; e a matéria, da forma; pois a forma substancial ou a forma acidental que, de per si, são comuns, encontram-se determinadas a tal ou a tal sujeito. Diz-se finalmente que o efeito participa de sua causa, sobretudo quando ele não iguala a virtude da causa. Dizemos, por ex., que o ar participa da luz do sol, porque não a recebe com todo o brilho que ela possui no sol.”

Neste caso, a espécie é substancialmente idêntica ao gênero, mas participa do gênero por não possuir ela a razão do gênero em toda sua generalidade.

Temos aqui bem claramente exposto que Tomás de Aquino aceita a participação por similitude ou por hierarquia formal, não pròpriamente a de composição, que era aceita anteriormente por Boécio.

Veremos mais adiante que no caso da simbólica é essa participação a que mais se evidencia, até no pensamento chamado primitivo, o que não foi bem compreendido pelos estudiosos da antropologia em geral.

Não se deve concluir que Tomás de Aquino aceitasse a composição na participação, mas aceitava-a como um dos seus elementos. Deste modo, a participação para ele teria dois elementos: a composição entre o sujeito que ele participa e o de que ele participa.

Assim a espécie participa do gênero, mas não em toda riqueza do gênero.

As participações podem se dar de quatro modos diferentes:
1) participação de um sujeito concreto a uma forma qualquer;
2) participação entre os elementos de uma essência composta;
3) participação entre têrmos abstratos, estranhos uns aos outros em seu conteúdo formal;
4) participação entre têrmos abstratos, mais ou menos universais, compreendidos em uma mesma linha formal. (Geiger, op, cit., pág. 53).

Para a simbólica, como teremos oportunidade de mostrar, interessam apenas duas espécies de participação: a de composição e a de hierarquia formal, em que o participante é parcialmente o que um outro é em plenitude.

Em suma, estudaremos a participação por composição, e participação por similitude. Todos os entes participam de um ser supremo, mas este não participa de nenhum outro, foi o que já tivemos oportunidade de ver na “Ontologia”. Desta forma, todo ser finito é ser per participatíonem do Ser.

As perfeições atribuídas ao Ser Supremo são participáveis pelos’seres finitos.

E como o participante participa do participável segundo o seu grau de ser, e sendo ele finito, esta participação é conseqüentemente finita, mas reveladora de uma escalaridade de perfeição (mais ou menos).

Na simbólica das religiões nós vemos, mais adiante o mostraremos, que os símbolos são participantes dessas perfeições do Ser Supremo, segundo o seu modo de ser. Daí haver uma hierarquia de símbolos, que são superiores à proporção que participem mais da perfeição atribuída ao ser supremo, que nas religiões é a divindade.

Essa antecipação que ora fazemos é apenas preparatória para melhor compreensão da nossa maneira de visualizar o símbolo, desde que dele excluamos o meramente arbitrário, como se pode verificar nos sinais convencionais.

O símbolo, para ser tal, e nunca é pouco repeti-lo, deve afastar-se do meramente convencional, e revelar, nas formalidades que dele podemos captar, algo que seja participação do participado, ou simbolizado. Como o que é participado pode ser mais facilmente captável ou não por nós, o símbolo revelará maior ou menor clareza. Em alguns casos é críptico, ocultado, e impõe-se uma operação complexa de análise das diversas participações, segundo graus hierárquicos, para alcançar-se aquela que o símbolo participa.

Na parte final desta obra, onde examinaremos indiscriminadamente símbolos nos diversos sectores, mostraremos como se realizam as providências da dialéctica simbólica, isto é do método analógico pelo qual podemos interpretar os símbolos, interpretação esta que, em alguns casos, é múltipla pela polissignificância que já vimos dar-se no símbolo, pois este pode participar, não em uma, mas em muitas perfeições, atribuídas ao simbolizado.

Torna-se agora grandemente fácil compreender-se porque o simbolizado é polissignificado, isto é, pode ser referido por uma multiplicidade de símbolos, como por sua vez o símbolo é polissignificante, porque pode referir-se a várias formalidades das quais ele participa.

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