TEMA II
Artigo 1 – DA DISTINÇÃO – Explanação sintética
Sabemos que as diversidades transfísicas são por nós captadas, sem que possamos realizar separações de ordem física.
Não corresponde a toda distinção mental uma distinção real–física, uma separação física, como a que podemos distinguir entre um objeto corpóreo e outro.
Distinção, que vem do verbo distinguere, (de dis e tango, tanger, tocar) que significa separar, discernir, tem, na filosofia, um sentido claro: diz-se que uma coisa é distinta quando não> é outra. Distingue-se uma coisa de outra quando não há identidade entre uma e outra, enquanto outra.
A distinção pode ser real ou de razão. É real quando o que distinguimos é, na coisa, diversa de outra coisa (extra mentis). É de razão quando o que distinguimos é, na realidade, idêntico, mas é apenas distinguido pelo intelecto.
Um ente finito, enquanto é, opõe-se (põe-se ob) ao que quer que seja. Existir finitamente é opor-se, é ser distinto, e é ser, conseqüentemente, determinado.
A todo ser finito há sempre algo que lhe é extrínseco, que é também ser, pois o nada não lhe é extrínseco, porque não tem positividade (não é tético, de thesis, posição).
O ser infinito é distinto por transcendência. A ele nada se ob põe, porque fora dele não há nada.
É distinto dos seres finitos por transcendência em razão da sua absolutidade.
O finito é distinto do finito por oposição, e do infinito por privação. O infinito é distinto do finito por transcendência.
Há distinção numérica, quando dois ou mais objetos-de-pensamento são idênticos e não diferem pelo fato de serem apresentados diversas vezes.
Há distinção genérica (ou específica), quando duas ou diversas representações são intrinsecamente diferentes. Entre duas moedas, de mesma fabricação, só podemos estabelecer uma distinção numérica, entre moedas diferentes, uma diferença específica, entre uma moeda e um animal, uma diferença genérica, Duns Scot propunha ainda a distinção formal, a que existe entre objetos de pensamento realmente idênticos, mas em que “um implica alguma coisa que não é implicada no outro, que já estudamos em “Teoria do Conhecimento” e também o faremos neste livro.
Suarez admite ainda uma distinção modal, a que existe entre uma coisa e sua maneira de ser, por exemplo, entre a roda e o seu movimento. (NA: Esta distinção será melhor estudada nos artigos referentes à teoria das modais, de grande importância para a Ontologia.)
A distinção real é a que se dá entre objetos de pensamento que são diferentes uns dos outros por si mesmos, independentemente da operação do espírito que os pensa.
A distinção que está nas coisas pode ser física ou metafísica.
Há distinção física, quando há seres diferentes existindo independentemente uns dos outros (os escolásticos designavam o ser, quando tem a sua realidade independente, pelo termo ens quod, quer dizer, o ser que existe). Há uma distinção física entre mim e este papel, onde escrevo.
Há distinção metafísica, quando dois ou diversos princípios componentes são irredutíveis um ao outro, não tendo existência separada nem separável. Assim não há existência separada entre a forma esférica de um pneu e o pneu. Há uma distinção metafísica.
Assim é a distinção entre matéria e forma. Por não compreenderem bem tal distinção muitos filósofos atacaram a Metafísica, como o fizeram Hume, Augusto Comte, e até Descartes.
Este só admitia a distinção real, a modal, e a de razão. Fundava-se ele no pensamento de Ockam, quando diz: “Não pode haver nas criaturas nenhuma distinção, seja qual for, que tenha um fundamento fora do espírito, a não ser quando se trata de coisas realmente distintas; portanto, se existe uma distinção qualquer entre essa natureza e essa diferença individual, é preciso que sejam coisas realmente distintas”.
Os escolásticos costumam chamar de ens quo ou quo ens o princípio metafísico, em oposição ao ens quod, de que já falamos acima.
A distinção de razão é aquela que se forma entre objetos de pensamento que não são realmente distintos em si mesmos, mas que dão lugar a representações distintas.
Há distinções meramente verbais, como a que se faz entre a cidade de São Paulo e Paulicéia.
É preciso ter o máximo cuidado de não considerar as distinções do conceito, como distinções nas coisas. Impõe-se muita prudência aqui.
Há essa regra: Só se concluirá por uma distinção real quando uma distinção de razão é incapaz de assegurar a coerência do pensamento.
1) Regra de Descartes: “Nós podemos concluir que duas substâncias são verdadeiramente distintas uma da outra, somente quando podemos conceber uma, clara e distintamente, sem pensar na outra.
Assim, concebo clara e distintamente o ser pensante que eu sou, sem pensar no corpo: a alma é pois uma substância realmente distinta do corpo”. (A tal podemos opor que não há, no homem, pensamento puro, senão como produto de abstração. Há sempre uma raiz na sensorialidade).
2) “Quando não podemos formar dois conceitos independentemente um do outro, embora esses dois conceitos se excluam, temos, então, distinção metafísica, como, por ex.: com a potência e o ato. Esses dois conceitos exigem um e outro. Se a potência é ordenada pela ato, o ato atua uma potência. Há exclusão, porém, porque tudo que está em potência não está em ato, e a mesma coisa não pode, na mesma vez e sob a mesma relação, estar em potência e em ato” (Foulquié)”.
3) Quando não podemos formar dois conceitos independentemente um do outro, porque não se incluem explicitamente, embora implicitamente um seja incluído no outro, temos, então, a distinção de razão.
É a distinção que há entre o gênero e a espécie: “homem” implica “animal”, sem dizer explicitamente “animal”, é porque não há, entre o conceito homem e o de animal, distinção real; há apenas uma distinção de razão” (Foulquié).
O que Husserl considera “momento” nada mais é que distinção.
Em suas “Investigações lógicas”, considera o “momento” como parte de um todo que, embora seja por nós abstraído do conjunto, não pode existir independentemente por sisi mesmo. Assim, a cor de um objeto é um “momento”, porque não pode existir senão unida à extensão.
Em Spranger, altura, intensidade e timbre de um som são “momentos”, porque nenhum deles pode existir por si só.
É importante observar porém nossa capacidade de distinção. E essa capacidade tem significações importantes.
“Uma diferenciação substancial, sem prejuízo da unidade da essência específica, pressupõe necessariamente que a atividade abstrativa de nosso pensamento não somente pode separar o que é distinto ex natura rei, mas também é capaz de distinguir o que é idêntico ex natura rei”. (Fuetscher, op. cit. p. 224).
Nosso espírito é capaz de distinguir o que é idêntico ex natura rei, na própria natureza da coisa. E o podemos, porque o objetivamos esquemàticamente, compreendendo-o dentro de um grupo de notas, tensionalmente coerentes, que excluem as outras.
Por isso, consideramos como distinto o que podemos esquemàticamente diferenciar, que tomamos, abstratamente, a parte rei, sem existir independentemente, por sisi mesmo.
Tais distintos se identificam na tensão que os tem ou onde eles se dão.
Essa identificação é dialética, porque afirma a distinção e a identificação.
ANÁLISE DA DISTINÇÃO – A distinção na Escolástica
Opunham os escolásticos a distinção à identidade.
O que distingue uma coisa é o não ser outra, portanto, a carência de identidade com outra.
A primeira classificação entre os escolásticos foi:
Distinção:
Consiste a distinção real (distinctio realis) no que pertence à natureza da coisa, independentemente da operação mental que a capta.
Consiste ela, para os escolásticos, na carência de identidade entre uma coisa e outra, independentemente de qualquer operação mental.
A distinção lógica ou de razão (distinctio lógica ou distinctio rationis) é aquela que se estabelece apenas através de uma operação mental, mesmo quando não há distinção real entre as coisas. Assim podem ser consideradas as distinções entre animalidade e racionalidade, no homem, ou os atributos em Deus.
Há distinção modal (distinctio modalis), quando se distingue, na coisa, esta do seu modo, como já vimos.
- real simpliciter (real-real) também chamada entitativa;
- modal (modalis);
- virtual (virtualis).
É real simpliciter quando se refere à distinção própria entre uma coisa e outra coisa.
É real modal, quando se refere à distinção entre uma coisa e o seu modo (a distinção entre um corpo e a sua figura).
É virtual, quando se refere à virtude ou força resistente numa coisa que permite transfundir-se em outra.
Exemplos: A alma humana, apesar de racional, possui virtudes correspondentes ao princípio vital de outros corpos animais.
Classifica-se ainda, distinção: adequada ou inadequada.
É adequada a distinção, por exemplo, entre duas partes que formam a metade, cada uma, de um todo; é inadequada, a distinção entre o todo e uma das suas partes.
Há ainda, distinção: de razão raciocinante (distinctio rationis ratiotinantis); distinção de razão raciocinada (distinctio rationis ratiotinatae).
A distinção de razão raciocinante é a que se estabelece, pela mente, nas coisas, sem haver fundamento para tal.
A distinção de razão raciocinada é aquela que a mente estabelece nas coisas não realmente distintas, mas em que há algum fundamento na realidade para tal distinção.
Há ainda a distinção metafísica, que é aquela que metafisicamente podemos fazer entre categorias ontológicas, como a distinção entre quantidade e qualidade, entre existência e essência. Surge aqui uma grande problemática, como, por ex., o dar-se, ou não, uma distinção metafísica, ao lado de uma distinção real, etc.
Há momentos importantes onde a distinção penetra como elemento primordial, como nos temas de ato e potência, essência e existência, matéria e forma, etc., que em breve analisaremos.
SOBRE A DISTINÇÃO NA ESCOLA TOMISTA
Entre a distinção real e a de pura razão, coloca São Tomás a distinção de razão com fundamento na coisa, sobre a qual raciocina (cum fundamente in re).
A distinção real expressa coisas realmente distintas, independentes de toda consideração de nossa mente, por ex., alma e corpo, no homem.
A distinção de pura razão é a que se dá entre nomes ou conceitos só nominalmente distintos de uma mesma coisa, por ex. João, como sujeito e predicado de uma proposição.
A distinção cum fundamento in re é a que se dá entre objetos formalmente distintos de uma mesma realidade, como animal, racional, espiritual, livre, imortal no tocante ao homem, pois, na essência humana, se identificam todos esses objetos.
Animalidade e racionalidade não significam a mesma coisa, por isso são objetos formais distintos. Fora do homem têm esses objetos realidades distintas, não, porém, no homem. A ação abstratora do nosso espírito nos permite distinguir tais objetos.
A distinção de razão cum fundamento in re pode ser maior ou menor.
É maior quando os objetos distintos prescindem completamente uns dos outros. O conceito de animal prescinde objetivamente, e de modo completo, do conceito de racional, pois pode dar-se sem ele. A distinção tem um fundamento perfeito.
É menor quando os objetos distintos se incluem como o implícito e o explícito. O conceito de racional é distinto de o de animal, mas, como o inclui, ao tratar-se do homem, é de distinção menor, pois não poder-se-ia dar um homem, que é racional, sem a animalidade que o antecede.
A DISTINÇÃO FORMAL ESCOTISTA
Em “Teoria do Conhecimento”, abordamos por várias vezes os fundamentos epistemológicos da distinção formal escotista, ao estudarmos a “teoria da projeção e a da “abstração total”. Vimos que os correlativos objetivos dos conceitos universais têm de ser distintos, sob pena de cair todo o fundamento do realismo moderado. E essa distinção é dada com anterioridade à atividade abstrativa do espírito humano, portanto é uma distinção ex natura rei.
A distinção meramente formal é combatida por muitos por não poderem enquadrá-la entre a excludência: ou a distinção é real (in re), ou é conceptual, na mente humana. Não há lugar, portanto, para uma distinção formal. Colocada assim a objeção parece muito fácil combater a posição escotista. Ademais é frágil, pois seria excessiva ingenuidade pensar que os escotistas não tivessem meditado sobre este dilema: ou uma coisa tem a sua realidade fora da mente humana ou a tem na mente. Não há lugar para um meio termo.
Mas, primeiramente, antes de se discutir sobre meios termos, é preciso esclarecer o que se compreende por real.
É real o que independe do conhecimento (ex natura rei). Neste caso, não há lugar para mais ou menos, pois estamos em face do que só se coloca dentro de uma excludência. Mas os objetos, por sua índole, distinguem-se em três grupos: res-modus-formalitas. Não cabe dúvida que a modal seja ex natura rei, pois o rodar de uma roda se distingue real-modalmente desta, como veremos ao examinar a teoria das modais.
Para que a distinção formal fosse improcedente era mister reduzi-la à mera distinção conceptual. Como esta pode ser cum fundamento in re ou apenas elaborada pela nossa mente, se as formalidades fossem apenas elaboradas pela nossa mente, cairia, ipso fato, o realismo moderado, e estaríamos afirmando apenas o nominalismo, que, como vimos, na obra citada, atualiza apenas o esquema abstrato-noético e virtualiza os outros, o que o torna, do ângulo dialético, uma posição filosófica deficitária. Resta, nesse caso, reduzir a distinção formal à distinção conceptual cum fundamento in re, como o pretendem fazer quase todos os tomistas.
Ora, o fundamento da distinção formal escotista, epistemologicamente, está no realismo, isto é, no conteúdo objetivo que têm os conceitos universais, fundando-se no paralelismo entre a ordem do conhecimento e a ordem do ser. Tal afirmativa não encerra uma contradição interna para ser recusada, pois, como já vimos, na “Teoria do Conhecimento”, o esquema noético-abstrato, que é post rem, é um esquema intentionaliter construído do esquema concreto (in re), que é simbolicamente um referente do esquema essencial (ante rem), na ordem ontológica do ser. Portanto há um paralelismo entre a ordem gnoseológica, a ôntica e a ontológica, o que dá um fundamento à distinção formal escotista, que é real, sem ser uma distinção real ut res et re, pois o esquema concreto é a existencialização da essência, aspecto que será examinado e discutido mais adiante. Assim a animalitas e a rationalitas, no homem, não se distinguem real-fisicamente, mas apenas real-formalmente. (NA: No estudo do real, nesta obra, abordamos este tema sob outros aspectos.)