Há três pontos a observar na busca da natureza da verdade, três requisitos para qualquer teoria:
1) A teoria da verdade deve ser tal que admita o seu contrário, a falsidade. Alguns filósofos, e não poucos, deixaram de satisfazer adequadamente a esta primeira condição: construíram teorias segundo as quais todo o nosso pensar deveria ser verídico, o que os pôs nas maiores das dificuldades para achar um lugar para a falsidade. A este respeito, deve diferir a teoria da crença da teoria da intimidade, já que no caso da intimidade não é necessário tomar em conta a existência de um contrário.
2) Evidente parece que, se não houvesse crenças, nada poderia haver que fosse falso, nem tão-pouco haver verdade, no sentido em que a verdade é correlativa da falsidade. Se imaginarmos um mundo só de matéria, não haverá nele lugar para o falso; e, se bem se contivessem nesse mundo aquilo a que podemos chamar «fatos», não haveria nele verdade alguma, no sentido da palavra «verdade» em que esta última designa cousas da mesma espécie que as falsidades. O verdadeiro e o falso são, de fato, propriedades das crenças e das asserções; e, por isso, um mundo de pura matéria, não contendo crenças nem asserções, não teria verdades nem falsidades.
3) Cumpre porém observar, em contraposição ao que acabamos de dizer aí, que o verdadeiro e o falso de qualquer crença dependem de algo exterior à crença. Se creio que Carlos I veio a falecer no cadafalso, creio veridicamente, não em virtude de qualquer qualidade que seja intrínseca à minha crença, a qual pudesse ser descoberta pelo simples exame da mesma crença, senão que em virtude de um sucesso histórico que há dois séculos e meio se desenrolou. Se creio que Carlos I faleceu na sua cama, terei então uma crença falsa: e grau algum de vivacidade da crença, ou de diligência para chegar a ela, a poderá impedir de ser errônea, — e em virtude, também aqui, daquilo que sucedeu há muito tempo, e não em consequência de qualquer qualidade que seja intrínseca à própria crença. Por conseguinte, se bem que a verdade e a falsidade sejam propriedades das nossas crenças, são propriedades que estão dependentes de relações de crenças com outras cousas, e não de internas qualidades das crenças.
O terceiro dos requisitos acima indicados conduz-nos a adotar o modo de ver (que tem sido o mais comum entre os filósofos) de que a verdade é, ao cabo de contas, qualquer forma de correspondência entre crença e fato. Não é, no entanto, de maneira alguma cousa fácil o encontrar uma forma de correspondência para que não haja objecções irrefutáveis. Em parte foi por isso mesmo (e em parte pela impressão que se a verdade, de fato, consistisse numa correspondência do pensamento com alguma cousa de exterior a ele, nunca ao pensamento lhe seria dado saber quando é que a verdade tinha sido atingida) que se empenharam numerosos filósofos em tentar descobrir uma definição da verdade que não consistisse numa relação da crença com algo inteiramente exterior a ela. A tentativa de maior importância para estabelecer uma definição desta última espécie é a teoria de que a verdade consiste na coerência. O índice da falsidade é, ao que se diz, a incapacidade de entrar em organização coerente no edifício ou conjunto das nossas crenças, sendo a essência de qualquer verdade o ser parte do sistema inteiramente acabado, que é A Verdade.
Encontra-se, porém, uma grande dificuldade neste modo de ver; ou, melhor dito: duas grandes dificuldades. A maior das dificuldades é que não há razão para que admitamos que só é possível um corpo de crenças coerentemente organizado. Pode bem ser que um novelista, com dose suficiente de fantasia, pudesse inventar um passado para o mundo que se ajustasse a primor com o que nós sabemos, e que diferisse inteiramente do passado real. Em matérias de caráter mais científico, certo é que sucede frequentes vezes apresentarem-se duas ou mais hipóteses que explicam todos os fatos por nós conhecidos que têm relação com dado assunto; e se bem que os cientistas, em casos tais, façam diligências para achar quaisquer fatos que excluam todas as hipóteses menos uma, não se vê razão por que o consigam sempre.
Em filosofia, mesmissimamente, não parece raro que duas hipóteses rivais sejam ambas capazes de explicar os fatos. Assim, por exemplo, é possível que a vida seja um longo sonho e que o grau de realidade do mundo exterior só seja o que os objetos dos sonhos têm; no entanto, sem embargo de que esse modo de ver não parece incompatível com o que sabemos dos fatos, não há motivo para lhe darmos preferência sobre a interpretação corrente do senso comum, segundo o qual existem as outras pessoas, assim como as cousas. Deste modo, pois, falha a coerência como definição da verdade, porque nada prova que só possa haver um único sistema de organização coerente.
A outra objeção a essa definição da verdade é que supõe conhecida a significação de «coerência», quando a coerência, afinal de contas, pressupõe a verdade das leis da lógica. Duas proposições são coerentes quando ambas elas podem ser verdadeiras e são proposições incoerentes quando uma, ao menos, deve ser falsa. Para saber, porém, se duas proposições podem ser ambas verdadeiras, é preciso conhecer verdades tais como o princípio de contradição. Por exemplo: as duas proposições: «esta árvore é uma fala» e «esta árvore não é uma fala», não são coerentes por causa do princípio de contradição. Porém, se ao próprio princípio de contradição o sujeitássemos à prova de coerência, acharíamos que, se escolhêssemos o supor tal princípio falso, nada haveria de aí em diante que fosse incoerente com o quer que fosse. As leis da lógica, por conseguinte, ministram o esqueleto ou travejamento adentro do qual se pode aplicar a prova de contrastaria da coerência; a elas próprias, porém, não as podemos estabelecer por essa mesma prova.
Pelas duas razões indicadas, não podemos aceitar a coerência como dando o significado da verdade, se bem que seja frequentes vezes uma prova de contrastaria da verdade, que tem de fato a maior importância quando já conheçamos, previamente, uma certa dose de verdade.
Eis-nos, por conseguinte, revertidos à correspondência com um fato como constituindo a natureza da verdade. Resta definir o que se entenda por «fato» e qual a natureza da correspondência que deve subsistir entre crença e fato para que seja verdadeira uma certa crença.
De acordo com os nossos três requisitos, cumpre-nos buscar uma teoria que 1) permita à verdade o ter ela um contrário, a saber, o falso; 2) faça da verdade uma propriedade das crenças, mas 3) faça dela uma propriedade que por inteiro dependa da relação das crenças com cousas exteriores.