A. Sérgio
Abstraindo das especiais doutrinas que foram por Kant sustentadas, é muito comum entre os filósofos o considerar o que é a priori como sendo mental em certo sentido, como algo que mais diz respeito à maneira como devemos pensar que a qualquer dos fatos do mundo externo. […] É natural a maneira de ver que levou as pessoas a adotar tal nome [«leis do pensamento»]; mas há fortes razões, a despeito disso, para que nós pensemos que ele é errôneo. Para exemplo, tomemos o princípio de contradição. Enuncia-se geralmente assim: «cousa alguma pode ser e não ser ao mesmo tempo», querendo-se com isto exprimir o fato de que nada pode, ao mesmo tempo, ter e não ter uma qualidade dada. Se uma árvore, por exemplo, é uma fala, não pode também não ser uma fala; se a mesa é retangular, não pode não ser retangular; e assim sucessivamente.
Ora o que nos leva a chamar ao princípio uma «lei do pensamento» é que é antes pelo pensamento, que não pela observação externa, que vimos à persuasão da sua necessária verdade. Quando vimos que a árvore é uma fala, não precisamos de voltar a vê-la para comprovar que é falso que não é uma fala; o pensamento nos basta aí para que saibamos que é isso impossível: o não ser ela uma fala. E, não obstante, não deixa de ser errônea a conclusão de que o princípio de contradição constitui uma lei do pensamento. A nossa crença, quando acreditamos em tal princípio, não é a de que o espírito é de tal modo feito que não pode negar assentimento ao princípio de contradição. Esta crença é um resultado ulterior da reflexão psicológica sobre o caso, que já pressupõe, por sua vez, a crença no princípio de contradição. A crença no princípio de contradição vem a ser uma crença sobre as coisas, e não unicamente sobre os pensamentos. Não é por exemplo a crença de que, se nós pensamos que certa árvore é uma fala, não podemos ao mesmo tempo pensar que a dita árvore não é uma fala: é a crença de que, se a árvore é uma fala, a mesma árvore não pode não ser uma fala, ao mesmíssimo tempo. Assim, o princípio de contradição é uma lei que diz respeito às cousas, e não unicamente a pensamentos; e se é um pensamento a nossa crença no princípio de contradição, o próprio princípio de contradição, não obstante, não é um pensamento: é um fato concernente às cousas do mundo. Se aquilo em que acreditamos, quando cremos no princípio de contradição, não fosse verdadeiro das cousas do mundo, o sermos compelidos a crer nele, a pensá-lo nós como verdadeiro, não salvaria o principio de ser falso: e por aqui entendemos nós que não é uma lei do pensamento.
Valeria argumento análogo para os restantes juízos a priori. Quando ajuizamos que dois e dois são quatro, não enunciamos um juízo sobre o nosso pensamento, mas sobre todos os pares de coisas, reais ou possíveis. O fato que afirmamos, quando afirmamos que dois e dois fazem quatro, não é evidentissimamente que o nosso espírito é de tal modo feito que acredita que dois e dois fazem quatro. E é bem certo que fato algum a respeito da constituição do nosso espírito poderia por si tornar verdadeiro que dois e dois fizessem quatro. Assim, pois, o conhecimento a priori, se não é errôneo, não é tão-só um conhecimento sobre a constituição do nosso espírito, mas aplicável a tudo que possa haver, quer sejam cousas de natureza mental, quer sejam de natureza não mental.
Parece, de fato, que qualquer conhecimento a priori se refere a entidades que não existem, propriamente falando, quer no mundo mental, quer no mundo físico. Entidades são estas que têm semelhança ao que designamos por partes do discurso que não são substantivos; são entidades do mesmo gênero que as qualidades e as relações. Suponha-se, por exemplo, que eu estou no meu quarto. Eu existo, o meu quarto existe; mas existe o no? É óbvio, no entanto, que a palavra no tem algum sentido; designa uma relação que se dá de fato entre a minha pessoa e o meu quarto. Esta relação qualquer cousa é, se bem não possamos dizer que exista no mesmo sentido em que o meu quarto e eu. É esta relação, em, algo que podemos pensar e entender; se a não pudéssemos entender, não poderíamos entender a frase: «eu estou no meu quarto.» Muitos filósofos, na esteira de Kant, sustentam que as relações são obra do espírito, que as cousas em si não têm relações, que é o nosso espírito que reúne as cousas em um ato único do pensamento, e que assim produz ele essas relações que julga existentes entre as coisas.
Esta opinião, todavia, parece sujeita a objecções idênticas àquelas que já demos contra Kant. Afigura-se claro que não é o pensamento que produz a verdade da proposição: «estou no meu quarto.» Pode ser que seja verdade que está no quarto uma joaninha, ainda que nem eu, nem a joaninha, nem pessoa alguma, caiamos na conta de tal verdade, pois que essa verdade só diz respeito à própria joaninha e ao meu quarto, e não está dependente de nada mais. Cumpre-nos colocar as relações num mundo que não é mental nem físico. Para a filosofia, é esse mundo da maior importância, e em particular para os problemas do conhecer a priori.
Original
Apart from the special doctrines advocated by Kant, it is very common among philosophers to regard what is a priori as in some sense mental, as concerned rather with the way we must think than with any fact of the outer world. We noted in the preceding chapter the three principles commonly called ‘laws of thought’. The view which led to their being so named is a natural one, but there are strong reasons for thinking that it is erroneous. Let us take as an illustration the law of contradiction. This is commonly stated in the form ‘Nothing can both be and not be’, which is intended to express the fact that nothing can at once have and not have a given quality. Thus, for example, if a tree is a beech it cannot also be not a beech; if my table is rectangular it cannot also be not rectangular, and so on.
Now what makes it natural to call this principle a law of thought is that it is by thought rather than by outward observation that we persuade ourselves of its necessary truth. When we have seen that a tree is a beech, we do not need to look again in order to ascertain whether it is also not a beech; thought alone makes us know that this is impossible. But the conclusion that the law of contradiction is a law of thought is nevertheless erroneous. What we believe, when we believe the law of contradiction, is not that the mind is so made that it must believe the law of contradiction. This belief is a subsequent result of psychological reflection, which presupposes the belief in the law of contradiction. The belief in the law of contradiction is a belief about things, not only about thoughts. It is not, e.g., the belief that if we think a certain tree is a beech, we cannot at the same time think that it is not a beech; it is the belief that if the tree is a beech, it cannot at the same time be not a beech. Thus the law of contradiction is about things, and not merely about thoughts; and although belief in the law of contradiction is a thought, the law of contradiction itself is not a thought, but a fact concerning the things in the world. If this, which we believe when we believe the law of contradiction, were not true of the things in the world, the fact that we were compelled to think it true would not save the law of contradiction from being false; and this shows that the iaw is not a law of thought.
A similar argument applies to any other a priori judgement. When we judge that two and two are four, we are not making a judgement about our thoughts, but about all actual or possible couples. The fact that our minds are so constituted as to believe that two and two are four, though it is true, is emphatically not what we assert when we assert that two and two are four. And no fact about the constitution of our minds could make it true that two and two are four. Thus our a priori knowledge, if it is not erroneous, is not merely knowledge about the constitution of our minds, but is applicable to whatever the world may contain, both what is mental and what is non-mental.
The fact seems to be that all our a priori knowledge is concerned with entities which do not, properly speaking, exist, either in the mental or in the physical world. These entities are such as can be named by parts of speech which are not substantives; they are such entities as qualities and relations. Suppose, for instance, that I am in my room. I exist, and my room exists; but does ‘in’ exist? Yet obviously the word ‘in’ has a meaning; it denotes a relation which holds between me and my room. This relation is something, although we cannot say that it exists in the same sense in which I and my room exist. The relation ‘in’ is something which we can think about and understand, for, if we could not understand it, we could not understand the sentence ‘I am in my room’. Many philosophers, following Kant, have maintained that relations are the work of the mind, that things in themselves have no relations, but that the mind brings them together in one act of thought and thus produces the relations which it judges them to have.
This view, however, seems open to objections similar to those which we urged before against Kant. It seems plain that it is not thought which produces the truth of the proposition ‘I am in my room’. It may be true that an earwig is in my room, even if neither I nor the earwig nor any one else is aware of this truth; for this truth concerns only the earwig and the room, and does not depend upon anything else. Thus relations, as we shall see more fully in the next chapter, must be placed in a world which is neither mental nor physical. This world is of great importance to philosophy, and in particular to the problems of a priori knowledge. In the next chapter we shall proceed to develop its nature and its bearing upon the questions with which we have been dealing.