Ora, se interrogamos a história da filosofia, percebemos que a maior parte das filosofias só puderam alcançar sua meta, isto é, a proposição de uma teoria geral do real, mediante a estranha condição de dissolver o objeto mesmo de sua teoria, de reenviá-lo a este quase nada que Platão chamava o “menor ser” (mè òn) próprio às coisas sensíveis — quer dizer, às coisas reais — consideradas existentes apenas pela metade e com muito custo. Como se a realidade, da qual um pintor ou um romancista pode reproduzir, eventualmente e à sua maneira, o detalhe, só pudesse, em contrapartida, ser apreendida em seu conjunto pelo filósofo, se contestada em seu princípio mesmo e encontra-se assim despojada de sua pretensão de ser justamente a realidade, apenas a realidade, toda a realidade. Aliás, é um sentimento próprio, ao mesmo tempo, da filosofia e da sensibilidade mais comum julgar, confusamente, que as coisas são verdadeiras em seu detalhe, se consideradas uma a uma, mas duvidosas em seu conjunto, se consideradas em geral: que um fato pontual deve ser tido por real, mas que o conjunto dos fatos pontuais que compõem a realidade pode ser tido por incerto — em outras palavras, que, se é impossível duvidar de que quer que seja em particular, por outro lado é possível (e a filosofia tem frequentemente isso como ocupação habitual) duvidar de tudo em geral. O acontecimento real é reconhecido como real mas não a soma de acontecimentos da qual ele faz parte, ou melhor, não faz verdadeiramente parte: já que há percepção precisa do primeiro e somente vago sentimento da segunda. Este paradoxo da certeza do detalhe ligada a uma incerteza do conjunto pode ser enunciado sob uma forma matemática (paradoxo de um elemento existente que pertence a um conjunto não existente) ou aritmética (paradoxo de uma unidade reconhecida como igual a uma mas incapaz de dar duas se lhe acrescentamos uma segunda unidade). Sem dúvida, admitir-se-ia sem dificuldade que só há realidade singular e de modo algum realidade genérica, que só existem cães em particular e não cão em geral, como o ensinavam os filósofos nominalistas da Idade Média. Em compensação, é mais difícil admitir que a soma das realidades singulares equivale a uma realidade inexistente ou imaginária, comparável às sombras da caverna tal como as sugere Platão em uma passagem célebre de A República.
O mais notável dessa reticência ancestral da filosofia em levar em consideração unicamente a realidade é que ela não provém de modo algum, contrariamente ao que se poderia prever, de uma angústia legítima ante a imensidade e portanto a impossibilidade de tal tarefa, mas sim de um sentimento exatamente oposto: da ideia que a realidade, mesmo supondo esta inteiramente conhecida e explorada, não entregará jamais as chaves de sua própria compreensão, por não conter em si-mesma as regras de decodificação que permitiriam decifrar sua natureza e seu sentido. Considerar unicamente a realidade equivaleria portanto a examinar um avesso de que se ignorará sempre o direito, ou um duplo de que se ignorará sempre o original do qual é cópia. De tal modo que a filosofia tropeça habitualmente no real não em razão de sua inesgotável riqueza mas, ao contrário, de sua pobreza em razões de ser que faz da realidade uma matéria ao mesmo tempo ampla demais e escassa demais: demasiado ampla para ser percorrida, demasiado escassa para ser compreendida. Com efeito, não há nada no real, por mais infinito e incognoscível que ele seja, que possa contribuir para sua própria inteligibilidade: se é obrigado a buscar seu princípio em outro lugar, a tentar encontrar fora do real o segredo desse próprio real. Daí a ideia de uma insuficiência intrínseca do real: o qual careceria sempre, se posso dizer assim, e isto em todos os sentidos do termo, de sua própria “causa”.
O pensamento de uma insuficiência do real — a ideia de que a realidade só poderia ser filosoficamente levada em conta mediante o recurso a um princípio exterior à realidade mesma (Ideia, Espírito, Alma do mundo, etc.) destinado a fundá-la e explicá-la, e mesmo a justificá-la — constitui um tema fundamental da filosofia ocidental. Por outro lado, a ideia de uma “suficiência do real”, o que chamarei, lembrando Leibniz e seu princípio de razão suficiente, o princípio de realidade suficiente, aparece como uma inconveniência maior aos olhos de todos os filósofos — todos ou quase: deve-se naturalmente excetuar aqui os casos de pensadores tais como Lucrécio, Spinoza, Nietzsche, e mesmo, em certa medida, o próprio Leibniz. A intenção de filosofar unicamente sobre o real e a partir do real constitui, mesmo aos olhos da filosofia e da opinião mais comuns, um motivo de zombaria geral, uma espécie de enorme erro de base reservado apenas aos espíritos inteiramente obtusos e incapazes de um mínimo de reflexão. Daí os eternos gracejos endereçados pela maioria dos filósofos aos que confessam interessar-se pela experiência imediata, e mesmo satisfazer-se com ela; assim Hegel nessa passagem notável do início da Fenomenologia do espírito, que situa tal disposição mental abaixo mesmo da sabedoria dos animais: “Pode-se dizer aos que afirmam a tal verdade e certeza dos objetos sensíveis que eles devem ser reenviados às escolas elementares da sabedoria, ou seja, aos antigos mistérios eleusínicos (de Ceres e de Baco) e que devem aprender, primeiramente, o segredo de comer o pão e de beber o vinho. Pois o iniciado nesses mistérios não só chega a duvidar do ser das coisas sensíveis mas a desesperar dele; por um lado leva a cabo a aniquilação dessas coisas, e por outro as vê realizar esta aniquilação. Os próprios animais não estão excluídos dessa sabedoria mas, ao contrário, mostram-se profundamente iniciados nela; pois não permanecem diante das coisas sensíveis como se elas possuíssem um ser em si mas, desesperando da sua realidade e na absoluta certeza de seu nada, eles as tomam sem mais e as devoram. E a natureza inteira celebra, como os animais, esses mistérios revelados que ensinam qual é a verdade das coisas sensíveis.” Esta depreciação da realidade imediata é uma expressão particularmente eloquente do “princípio de realidade insuficiente” que constitui o credo comum a toda denegação filosófica do real; expressão bastante cômica também pela assimilação que sugere Hegel do apetite dos animais ao reconhecimento da pobreza ontológica dos alimentos que eles se preparam para devorar; como se primeiramente fosse necessário convencer o leitão do escasso teor da realidade da papa que lhe é oferecida, da “absoluta certeza de seu nada”, para convencê-lo a cravar os dentes nela.
É em um espírito vizinho que um hegeliano moderno, Eric Weil, julga-se autorizado a declarar de saída, em um artigo justamente consagrado à realidade (“Sobre a realidade”), que a realidade que podemos experimentar é desprovida de toda “realidade real”: “O que se dá imediatamente não é real.” Poder-se-ia declarar, de modo igualmente arrogante, que uma bebida que é dada para beber não é uma verdadeira bebida, ou que uma mulher que se oferece às carícias não é verdadeiramente uma mulher. Tais palavras são naturalmente insensatas mas também são, diria, altamente “filosóficas” — no sentido, é verdade, lamentável do termo que levaria facilmente a pensar, como sugere L. M. Vacher em um ensaio recente, que a principal função da filosofia é “dar crédito a tolices ao mesmo tempo em que desconsidera evidências ”.
Se é obrigado, com efeito, a admitir que a filosofia, que se propõe a compreender e interpretar o que existe, frequentemente só tem olhos e atenção para o que não existe. Nada mais surpreendente, de resto, do que esta tendência ordinária e obstinada da filosofia em querer sempre refutar de preferência o que é manifestamente verdadeiro, assim como depreciar instintivamente o que é indiscutivelmente agradável (isto sendo uma consequência necessária daquilo, pois a suspeita quanto ao real estende-se necessariamente ao que este pode oferecer de prazeroso). Spinoza resume muito bem essa habitual propensão da filosofia à inversão das verdades e dos valores: “A superstição parece admitir que o bem é o que ocasiona a Tristeza; e o mal, o que causa a Alegria .”