Religião grega

Nada nos constrange a desistir, por tão óbvia que é, de pensar na extrema complexidade da religião grega. Nem é de estranhar que o seja, onde não existe teologia salvaguardada por uma tradição expressa em documentos escritos, expurgados de toda e qualquer excessividade agressiva, de encontro a um só «Corpo Místico». Na Grécia, nunca houve uma , porque esta pressupõe a liberdade de crer ou não crer, liberdade responsável perante um pensar coerente, do sacerdócio de um Deus único, com atributos filosoficamente caracterizados. O sacrifício aos deuses da Pólis liberava os Gregos de qualquer profissão de crença e, portanto, de toda a acusação de heresia. Processos de impiedade são processos «políticos» – religiosos somente, enquanto a Pólis mais se aproxima, por sua natureza, de uma Igreja que de um Estado. Os Gregos não creem em seus deuses; aceitam ou não, a conformidade dos mitos e dos ritos que os consubstanciam, com sistemas cosmológicos e antropológicos a que aderem não se sabe por força de que argumentos, que a uns persuadem e a outros não. Isto acontece desde os primeiros alvores da filosofia. Mas, antes que esta nascesse? Também, então, ninguém poderia dizer que os Gregos acreditavam nos deuses pois, decerto, faltava-lhes a liberdade de não crer, sendo eles, para eles, o próprio fundamento do mundo em que viviam. Os deuses «explicavam» o mundo, os homens e suas respectivas relações; e não eram o mundo e os homens, com as relações estabelecidas entre um e os outros, o que «explicava» os deuses. O mito religioso (não sei se há o que o não seja) sempre foi um prius. Mesmo em relação à filosofia que, queira-o ou não, vive a vida de um mito que só dos outros se distingue, na medida em que, em lugar de uma história sagrada e de um drama ritual, e como sinal de uma ausência, que marca vincadamente a presença, tenta preencher, com os argumentos de uma razão razoante, o irrazoável silêncio, não só do mito que ainda não foi dito, mas também dos interstícios daqueles que já se disseram.

Cortemos aqui a corrente que longe nos levaria, mas poderá restabelecer-se, ou na sequência deste escrito ou por anotações parentéticas. Falávamos da complexidade da religião grega (será ela muito menos complexa do que aquela que poderia chamar-se uma «religião brasileira»?). É esta que permanece na mira da nossa atenção interessada em descobrir as mais fundas razões da complementaridade que propuséramos, e que, por pouco, não rejeitamos por supérflua e importuna. No entanto – parece-nos -, esta complexidade só existe para nós, estudiosos bem distantes de um passado que se despreza por força da triste ilusão de que melhor podemos entender o presente. Mantemos seríssimas dúvidas de que os Gregos se apercebessem dela e, sobretudo, das contradições que filólogos e historiadores, desde início do século XIX, insistem em relevar, como se delas dependesse a decifração de tantos enigmas que nos tocam de passagem, flutuando ao sabor da corrente de uma lacunaríssima tradição. E, na verdade, nãomeio de racionalizar as nossas perplexidades, sem atentar nessas contradições que – repisando – não cremos que jamais tenham sido, para os Gregos, uma fonte das mesmas ou de outras semelhantes. As contradições são facilmente descritíveis, quando não, explicáveis, pelo facto de não haver fenômeno cultural que, em parte seja mais «conservador», mais persistentemente igual a si mesmo, do que a religião (não é verdadeiramente assombroso que se encontrem símbolos da religiosidade minoica nos terreiros da Bahia?) e que outra parte se submeta docilmente ao ritmo de uma evolução, mais ou menos acelerada, do pensamento filosófico que tem por objectivo averiguar qual seja a natureza da divindade. No mesmo tempo, em que, por exemplo, o «Um» de Plotino desafiava a inteligência dos pensadores gregos e romanos, praticavam-se ritos e relatavam-se mitos, que, sem exagerada audácia de imaginação, poderíamos arremessar para trás deles, à enorme distância em que a história e a arqueologia fixou o início do neolítico pré-cerâmico, ou até à indecisa faixa em que esse início se confunde com o término do paleolítico. Sabemos que tudo isso ainda não era grego, mas que veio a sê-lo por uma adoção, cujas causas ou simples condições, só de tentar pensá-las, chegam a acometer-nos de incontroláveis vertigens – aquelas que produzem uma visão do insondável abismo do tempo.

Quanto à religião, em todos os momentos alinhados ao longo dos dois bem contados milênios que vão do início da civilização micênica (mais ou menos 1600 a. C.) ou minóico-micênica, até o consolidado triunfo político do cristianismo (mais ou menos 500 d. C.), o «novo» jamais teve o poder de abolir a vigência e a validez do «velho». Outrora, como agora, os Gregos dispunham de uma teologia que nos permitimos apelidar de «ortodoxa», quer a dos bardos que cantavam nos burgos da Argólida (por exemplo mais conhecido) «honras e artes que cabiam aos Olímpicos» quer a dos filósofos que nas cidades da Jônia, da Itália Meridional e, por fim, em Atenas, enquanto vituperavam a «superstição», propunham-se argumentar, tão persuasivamente quanto possível, a transcendência da divindade, sobretudo através daquele combate ao antropomorfismo, cujos golpes nem só na linhagem dos pensadores se encontram testemunhados. Com efeito, não faltam motivos para crer que os mais certeiros tenham sido desferidos por um grande poeta do século v, em pleno auge do classicismo – referimo-nos a Sófocles, contemporâneo de Fídias e Péricles que, nas mais trágicas de suas tragédias, terrivelmente humilhou os insensatos que não julgavam impenetráveis os desígnios dos deuses, isto é, os personagens da lenda heroica, pelo poeta afeiçoados de modo inédito, que supõem muito bem saber que tão humanos como os seus, são os critérios mediante os quais os deuses apartam o erro da verdade. É claro que se apresenta e representa aqui, uma forma de «anantropomorfismo» ou de «anti-antropomorfismo», de desumanização do divino, tanto ou mais vigorosa e eficaz do que a de Xenófanes, por exemplo mais lembrado, mas que, para o leitor, desatento, não passa de mera negação de que tenham os deuses a figura humana.

Abellio, Raymond (29) Antiguidade (26) Aristotelismo (28) Barbuy, Heraldo (45) Berdyaev, N A (29) Bioética (65) Bréhier – Plotin (395) Coomaraswamy, Ananda (473) Enéada III, 2 (47) (22) Enéada III, 6 (26) (21) Enéada IV, 3 (27) (33) Enéada IV, 4 (28) (47) Enéada VI, 1 (42) (32) Enéada VI, 2 (43) (24) Enéada VI, 3 (44) (29) Enéada VI, 7 (38) (43) Enéada VI, 8 (39) (25) Espinosa, Baruch (37) Evola, Julius (108) Faivre, Antoine (24) Fernandes, Sergio L de C (77) Ferreira da Silva, Vicente (21) Ferreira dos Santos, Mario (39) Festugière, André-Jean (41) Gordon, Pierre (23) Guthrie – Plotinus (349) Guénon, René (699) Jaspers, Karl (27) Jowett – Platão (501) Kierkegaard, Søren Aabye (29) Lavelle, Louis (24) MacKenna – Plotinus (423) Mito – Mistérios – Logos (137) Modernidade (140) Mundo como Vontade e como Representação I (49) Mundo como Vontade e como Representação II (21) Míguez – Plotino (63) Noções Filosóficas (22) Ortega y Gasset, José (52) Plotino (séc. III) (22) Pré-socráticos (210) Saint-Martin, Louis-Claude de (27) Schuon, Frithjof (358) Schérer, René (23) Sophia Perennis (125)