Examinemos a questão noutra perspectiva. Uma das portas de acesso ao mundo mítico é a reflexão sobre o simbólico. Se há uma realidade simbólica – aquela, cuja expressão mais adequada é o mito – é ela constituída por entes fluidos e translúcidos; de tal maneira fluidos, que indistinto se torna o limite entre o ser humano e o ser divino, entre o ser divino e o ser natural, entre o ser natural e o ser humano; e de tal maneira translúcidos, que através do ser homem transparece o ser animal ou o ser planta, o ser rio, mar ou montanha; ou o através do ser deus transparece o ser humano ou o ser natural. Perca o simbólico a sua fluidez e a sua transparência, que sucederá? Tudo se cousifica! E a coisa, que nos mostra a sua face de terra, oculta seus veios de sangue ou de seiva, o corpóreo oculta o anímico ou o anímico oculta o corpóreo, o homem esconde o divino ou o divino esconde o humano. Quando o símbolo se cousifica, ou quando por diabólica inspiração ou sugestão, nós cousificarmos o simbólico, a metamorfose já não é possível, e o poeta virá então falar-nos de um «Último Sortilégio» e cantar-nos, tangendo a lira da consciência infeliz, estes versos de desânimo e de renúncia:
Outrora meu condão fadava as sarças
E a minha evocação do solo erguia
Presenças concentradas das que esparsas
Dormem nas formas naturais das coisas.
Outrora a minha voz acontecia.
Fadas e Elfos, se eu chamasse, via,
E as folhas da floresta eram lustrosas.
Cremos haver respondido à primeira das perguntas acima formuladas (que mundo seria o da mitologia?), e da única maneira como era possível fazê-lo: sugerindo. (Eudoro de Sousa, “Sempre o Mesmo acerca do Mesmo”)