O mundo fechado, do falatório (Gerede), do cotidiano (Gabriel Marcel)

GMarcel1951

Certamente haveria motivos para enxertar neste comentário outro mais hipotético, do qual só posso esboçar os contornos aqui. Mais uma vez, poderia parecer que Rilke pensava apenas no artista — particularmente no poeta, mas talvez também no pintor, cuja missão consiste em elevar o visível a um plano superior de realidade. Não devemos esquecer o que a descoberta de Cézanne significou para ele. Mas, novamente, a vocação do artista é tomada como a própria vocação do homem quando atinge seu mais alto grau de iluminação. Isso se torna ainda mais claro à medida que nos damos conta da insuficiência de uma teoria puramente utilitária da expressão. A expressão não é um simples método de intercâmbio em vista de certos fins que temos diante de nós; ela tem valor intrínseco, podendo-se até afirmar que é ela própria o maior de todos os fins, quando atinge sua realização plena.

É certo que ninguém negaria que existe um uso degradado e exclusivamente pragmático da linguagem; mas tal uso é justamente o sinal de uma deterioração humana que cabe aos poetas e filósofos denunciar. E questiona-se se essa degradação da linguagem não está ligada a uma perda de franqueza e pureza do olhar, uma perversão do ser que ocorre assim que o homem estabelece seu universo como um mundo fechado, em vez de se voltar para o aberto. (Não tenho certeza se a expressão le large não seria preferível, pelo menos em francês, à expressão “o aberto”, que parece muito difícil de aclimatar em nossa língua.)

Parece que, quando o filósofo Heidegger conheceu as Elegias, declarou que Rilke havia expresso em poesia as mesmas ideias que ele próprio desenvolvera em sua grande obra Ser e Tempo. Talvez essa afirmação, a princípio surpreendente, torne-se mais clara até certo ponto se considerarmos que o mundo fechado tende a se tornar o do falatório (Gerede), o do cotidiano — ou, preferiria dizer, o mau tipo de cotidiano. Mas então, Heidegger estava ciente de que poderia haver um cotidiano bom ou mau, assim como há um infinito bom ou mau?

Seria ainda discutível, no entanto, se não há uma oposição essencial entre a Weltanschauung do poeta e a do filósofo. Como diz muito bem De Waelhens em seu excelente livro sobre a filosofia de Heidegger, a liberdade diante da morte (Freiheit zum Tode) aproxima-se muito do amor fati de Nietzsche. No fundo, trata-se de uma disposição fundamental em relação à morte. “Compreender que estamos morrendo”, diz De Waelhens, “é a verdadeira atitude da existência autêntica diante da morte. Isso significa que, a cada momento da realidade, todas as nossas possibilidades devem ser projetadas na tela da morte.” A consciência genuína de nós mesmos está indissoluvelmente ligada à angústia da morte.

“Das Sein zum Tode ist wesenhaft Angst.” Essa fórmula me parece tão anti-Rilkeana quanto possível, embora em outros trechos encontremos analogias impressionantes entre os textos em que a morte parece ser concebida por ambos como uma consumação pessoal. Mas poderíamos dizer que, para Heidegger, o homem sempre tem sua morte diante de si porque a carrega dentro de si. (Sou tentado a lembrar aqui alguns versos de Valéry, particularmente em Ébauche du Serpent.)

A ideia de um Doppelbereich, de um reino duplo, e de uma superconsciência angélica que transcende essa dualidade e a reabsorve em uma unidade superior, me parece contrária tanto à letra quanto ao espírito de Heidegger. Pode-se objetar que estamos lidando aqui com o que é puramente mítico e que seria irracional tentar transcrever um mito em linguagem técnica para evidenciar a oposição que tenho em mente no momento. Concordo. O mito aqui é intraduzível, em última análise. No entanto, ele recolhe e concentra a quintessência de uma experiência particular; essa experiência é o que importa aqui, e dificilmente acredito que ela possa ser reduzida àquilo que se reflete na filosofia de Heidegger.

Ou as Elegias e os Sonetos a Orfeu devem, afinal, ser considerados meros exercícios, no sentido valeryano da palavra, ou como digressões — e essa interpretação é ainda mais difícil de aceitar, pois a correspondência está lá para explicar em detalhes o significado desses poemas e acentuar sua significância parenética — ou então devemos reconhecer que, para Rilke, há um Além, não confundível com o além cristão, mas ainda assim, para nós seres não iluminados, outro aspecto do mundo a que pertencemos; isto é, um reino dos mortos onde ocorre aquela metamorfose que não temos tanto que suportar quanto empreender, pois é precisamente da essência do homem ter que consentir com ela e talvez prepará-la:

Wolle die Wandlung. O sei für die Flamme begeistert,
drin sich ein Ding dir entzieht, das mit Verwandlungen prunkt.

Queres a mudança. Sê apaixonado pela chama
em que uma coisa se subtrai, que em mudanças se exibe.
(Sonetos a Orfeu, trad. de Dora Ferreira da Silva)