O falar de e o falar para

Cassin2018a

De fato, a filosofia clássica tematizou essencialmente duas dimensões: o falar de e o falar para. Falar de, por um lado, como quando digo “a folha é branca”, “dois e dois são quatro” ou “os homens nascem livres e iguais em direitos”: trata-se do verdadeiro ou falso, é o constativo do discurso ordinário, seja de percepção, ciência ou filosofia. Falar para, por outro lado, como quando digo “a bela Helena é inocente” ou “avante, filhos da pátria”: trata-se de persuasão, é o discurso da retórica. Sim, meus exemplos, todos os exemplos, já mancam: “a bela Helena é inocente” talvez seja uma descrição verdadeira, “os homens nascem livres…” talvez seja uma frase retórica. É preciso manter essa claudicação em mente.

Como caracterizar essa terceira dimensão da linguagem, que não é nem falar de nem falar para? Aristóteles apenas a menciona para rejeitá-la como “sofística”, fora do que constitui a fala humana e a humanidade do homem, e a chama pejorativamente de “falar por falar” (legein logou kharin). Com Novalis, ela se chama “logologia”; com Lacan: “falar em pura perda”; com Austin: “performático”. Mais precisamente, o performativo austiniano é sua espécie mais pura, aquela que destaca os traços do gênero; ele o isola linguisticamente ao valorizá-lo. Essa dimensão (entende-se por que Lacan inventa a palavra “diz-mensão”) não visa nem a verdade nem a persuasão, mas a “felicidade” (felicity) no sentido de efetivação, realização, o que chamo em sofística de efeito-mundo. É essa terceira dimensão que Lyotard evoca em O Diferendo, com seu: “Seria preciso estender a ideia de sedução […]. Não é o destinatário que é seduzido pelo destinador. Este, o referente, o sentido, sofrem não menos que o destinatário a sedução exercida.”

Pois, assim que se a isola, essa terceira dimensão reflui sobre as outras duas: “os homens nascem livres…”, se a Declaração Universal dos Direitos Humanos diz isso, eles nascem livres, não? Vocês ficam persuadidos e, até mesmo, isso se torna verdadeiro, real – mais ou menos… E quando afirmo que “a folha é branca”, ela tem todas as chances de ser, aliás já os convenço disso. As fronteiras entre as três dimensões – verdade, persuasão, felicidade – são porosas, e a performance-performatividade está em toda parte.