Novecentas conclusões filosóficas, cabalistas e teológicas

Apresentação de Bertrand Schefer (Miradola1486)

As Novecentas Conclusões criaram o terreno onde florescia a visão de uma nova era. Para iniciar esse movimento, Pico della Mirandola imaginou organizar um dos maiores concílios filosóficos de todos os tempos, reunindo em Roma eminentes sábios para um debate público sobre “novecentas teses a discutir”. Os Tempos Modernos precisavam reexaminar seus fundamentos e repensar a constituição do saber que definia o Ocidente. Era necessário remontar às próprias origens e constatar que as divergências eram sempre proporcionais ao afastamento das fontes. Todas as oposições deveriam encontrar resolução em sua origem, e assim veríamos como os séculos haviam se desviado do caminho único, filosófico e religioso, no qual a humanidade inicialmente se engajara. Pico propunha uma nova forma de entrar no mundo do espírito para pacificar e harmonizar a comunidade humana. Mas era preciso começar sabendo exatamente o que se sabia, para resituar a história e o sentido do discurso humano. A empreitada era titânica: foi preciso repensar tudo para assegurar que a discórdia não estava fundada nas próprias coisas.

Uma vida infinita não bastaria para possuir e manipular todo esse saber, compreender seu significado, estudar cada palavra e cada aspecto. Para se libertar do conhecimento, a nova filosofia precisava concluir sobre o conhecimento. Pico della Mirandola escolheu o caminho mais radical mas também mais conciso. Apesar de sua lenda, sua obra não acumula nem multiplica ideias e doutrinas, ela propõe um modelo de pensamento. A conclusão, por definição, levava o discurso filosófico ao seu termo. Mas esse termo não era um fim. Extraída do processo demonstrativo e multiplicada sem ordem aparente, ela produzia o efeito exatamente oposto: o discurso era captado a jusante, além de si mesmo, e abria um espaço de conhecimento que já nada tinha de comum e pertencia diretamente à experiência filosófica.

A empreitada se realiza em dois tempos. Um primeiro exame histórico e genealógico traça a articulação dos saberes transmitidos sucessivamente pelas escolas e faz aparecer seus elementos concordantes. Toda a história da filosofia tendo se decidido e dividido em torno de Platão e Aristóteles, as doutrinas mais diferentes dependem umas das outras e formam uma cadeia quase ininterrupta que é preciso reconstituir. Surgem laços de dependência: entre as principais escolas “modernas” e os filósofos árabes, que transmitiram a doutrina de Aristóteles ao Ocidente medieval, entre estes e os primeiros discípulos gregos. Por sua vez, os platônicos helenísticos comentaram seu mestre multiplicando os caminhos: metafísico, teológico, místico, mágico. Estes últimos beberam na fonte dessa antiga sabedoria da qual o próprio Platão se inspirava. As Novecentas Conclusões traçam essa genealogia ideal que une Pitágoras, Orfeu, os Caldeus, os Egípcios, e se estende até os Hebreus. Todos os saberes, começando pelos dos primeiros mestres, encontrarão ali uma coerência superior.

Poder-se-ia sempre reprovar a esse impressionante panorama certo número de lacunas. Doze conclusões não podem pretender resumir a doutrina de Avicena, e o capítulo sobre Plotino, por exemplo, nada diz sobre a tese maior do filósofo acerca da transcendência do Uno. Mas o saber é finito e no meio dessa prodigiosa erudição não há qualquer preocupação de exaustividade real no tratamento dos textos, como o título de Novecentas Conclusões indica suficientemente. A completude, como a ciência, é apenas um sonho ou, dito de outro modo, é realmente relativa. Visível em seus traços, a concórdia doutrinal deve no entanto se extrair da literalidade e não buscar seu sentido na “superfície das palavras” responsável pelas divisões e discórdias. É preciso ver mais longe, ir à substância da linguagem e pensar a possibilidade de uma concórdia originária no modo especulativo da coincidência.

O termo desse primeiro exame opera um deslocamento de força excepcional. A única forma de apreender a unidade do saber, de tornar pensável sua imensidão, de superar suas contradições, consiste em pensar o próprio saber em outro plano. A soma infinita de dados enciclopédicos deve ser restituível em termos filosóficos. As conclusões reduzem tudo ao essencial e, em primeiro lugar, o saber à sua expressão metafísica. Pico della Mirandola impõe uma estrutura onde o leitor deve se esforçar para passar do saber dado ao saber em ato, realizado por sua enunciação. Nesse sentido, a segunda parte “original” do livro realiza a primeira. Cada conclusão é e engendra um novo conhecimento; todo conhecimento novo nascendo de um conhecimento anterior, a conclusão constitui um termo a partir do qual outros conhecimentos se abrem e tornam-se novamente possíveis. O peso do saber desdobrado se apaga assim à medida que aumenta, porque o saber recomeça sem cessar e se abre no momento mesmo em que se pensava que ele parava. O edifício se constrói enquanto o andaime se desfaz. O jogo recíproco das conclusões que afluem às dezenas provoca um movimento onde toda antecipação do discurso é propriamente impossível. Estamos entregues ao aparecimento das ideias e sempre já ultrapassados por elas. Esse saber se aventura além do que já sabemos, e as ideias apreendidas na surpresa de seu confronto anunciam o nascimento dos conceitos. Libertado da constrição demonstrativa, a ordem do discurso se deixa penetrar pelos atos de pensamento que acessam e se ligam à totalidade do mundo cognoscível. Pico della Mirandola funda toda sua composição “aleatória” nesse princípio: numa totalidade, a parte não é distinta em ato de sua própria totalidade. A parte atualiza a cada instante sua totalidade, a totalidade existe em cada uma de suas partes. Cada ideia, desde que atualizada em sua relação com o todo pensável, pensa o conjunto do inteligível. A estrutura total sustenta cada conclusão, e o branco abissal substituído às articulações lógicas dá à ideia o tempo de se desfazer para se recompor.

Essa circulação interrompida da ideia impulsionada pelo movimento geral responde rigorosamente ao ideal de uma ciência não demonstrativa. O saber aqui em ação não é mais aquele do qual fazemos experiência aqui embaixo, entravado por disjunções ou exclusões. A lógica só trata de predicados ou acidentes, ela é “prática e material”. Os filósofos platônicos já haviam tentado a experiência de tal ciência não demonstrativa. Chamavam de “purificação” a atitude que consistia, sem qualquer outro estudo ou investigação, em levar o olhar para as Ideias, recolhê-las e confrontá-las. Ao contrário do espaço material e concreto, que se define como a exclusão recíproca de suas partes, os inteligíveis compartilham o mesmo “lugar”, cada ideia é colocada com todas as outras sem exclusão nem contradição. Os contraditórios são compatíveis no espírito e tudo pode ser unido a outra coisa permanecendo si mesmo.

É nesse palco metafísico que se joga o essencial das Novecentas Conclusões. Mas o que há para buscar no fundo é acessível desde a forma: basta fazer a experiência dessa disposição aleatória, desse encontro de ideias, para alcançar um espaço de linguagem onde a parte é o todo e o exprime em ato, onde o pensamento pensa sem outro recurso que as relações de ideias que ele mesmo provoca. A concórdia se realiza no próprio ato do pensamento. E é precisamente porque elas não demonstram nada mas confrontam o espírito com seu movimento natural que as conclusões podem esperar libertar a realidade de suas contradições.

Não há portanto nesse livro nem começo nem fim, porque ele já concluiu, e essa conclusão não é outra coisa que o começo de uma questão sobre o objeto perpétuo do pensamento. Entrar nesse texto e aceitar seu exercício é estar ao mesmo tempo “em toda parte e em parte alguma”, situar-se e orientar-se no meio de um universo cuja soma dos saberes oferece ao filósofo esse mesmo lugar que Deus concedera ao homem, no último dia da criação. O homem aparece e se vê num mundo acabado que desde então volta sobre si mesmo: imagem de todas as coisas mas não possuindo nada, livre para ir “filosofando ao longo dos degraus da escada, isto é, da natureza, penetrando todas as coisas desde o centro até o centro”. Para agir plenamente, o livro deve restituir a mais exata imagem do mundo, no instante preciso em que o homem ali foi colocado pela primeira vez, em seu centro, mergulhado no meio das coisas, para admirar sua beleza, medir sua profundidade, pesar sua razão.

Um novo passo é dado na natureza. Pico della Mirandola amplia o horizonte doutrinal e especulativo do saber para alcançar a expressão da própria realidade. Não apenas o texto realiza a concórdia no movimento do pensamento, na imitação do mundo e no aparecimento, à medida do livro, de um homo philosophus, mas ele leva essa sede de coincidência e união até na língua. As querelas entre nominalistas e realistas haviam falhado em resolver a questão da linguagem e da verdade. Os alegoristas haviam tocado com o dedo imagens da natureza expressas no Livro, mas permaneceram em convenções puramente simbólicas. A língua natural não alcançava a língua da natureza. As Novecentas Conclusões renovaram a ideia de uma língua universal, que pudesse ir além das convenções e fosse ao mesmo tempo realmente natural, racional e divina, segundo cada momento da realidade. Três hipóteses, que fizeram a fortuna do livro, conduziram todo o projeto do Renascimento. A obra que levava a experiência do pensamento a uma de suas mais absolutas extremidades terminava num horizonte onde a palavra humana podia enfim coincidir com o universo e a vida. A magia propunha, por meio de signos e palavras sem significado, uma língua prática agindo sobre as forças e os laços da natureza. A matemática refletia diretamente por seus caracteres a razão das coisas, pois os números são ideias em si. A língua hebraica enfim, cujas letras além de toda convenção humana exprimiam na Cabala a própria realidade, podia constituir a língua essencial e criadora de que a humanidade e a filosofia precisavam para se harmonizar com o mundo e compreendê-lo. Dessas três línguas do mundo, nenhuma perdurou. A matemática se impôs como instrumento de medida restrito às quantidades, a magia e a Cabala continuaram a viver escondidas no ocultismo — as Novecentas Conclusões não foram discutidas mas queimadas em praça pública e ninguém jamais realizou aqui a concórdia. Eis o que sem dúvida não entra mais no horizonte do livro, mas no nosso, e é no que fizemos dele que deveremos medir nossos progressos.