Não há existência ideal (Souriau)

Souriau1943

§ 108. Uma coisa é certa: há muitas coisas, seres e fatos na superexistência, muitos Éons neste Pleroma, e não apenas o Uno. Este mundo é hierárquico e arquitetônico. É até o que temos como mais seguro sobre ele. Já vimos: Árvore de Jessé ou Escada de Jacó. Há uma ordem e quase uma genealogia da superexistência. Os modos de existência, por suas diversas aproximações, inclinam seus ramos para desenhar, nas várias chaves dessas abóbadas, lugares para ocupantes.

Será o Deus de Malebranche, ou o Super-Homem de Nietzsche, que está na intersecção entre corpo e alma? Pode-se duvidar. Não seria colocar Deus muito baixo na hierarquia dos Éons superexistenciais, situá-lo nesse nível? Mas não seria divinizar o homem mais real, entrevê-lo imaginando-o tal como deve ser para realizar essa unidade – não apenas das existências corpórea e psíquica, mas desses dois conjuntos e da existência espiritual, e ainda das existências da ordem ôntica e da ordem do evento?

Se Deus existe, pergunta Nietzsche esplendidamente, por que eu não sou Deus? “Preciso me tornar Deus”, dizia já Novalis. Mas, de um modo ou de outro, demasiado divino para ser chamado homem, demasiado humano para ser chamado Deus (e é ao dar nomes que os metafísicos caem no erro), aquilo de que se fala aqui ou ali é o mesmo ser (a mesma entidade) entrevisto vagamente de uma forma ou de outra, mas precisamente designado, com seu teor exato de realidade, pelo ponto metafísico que definem suas coordenadas existenciais.

Não nos deixemos levar a dizer: “é o mesmo ser”, no sentido de “é o próprio ser”; pois falar assim seria apressar-se em designar sob um nome global toda a região da superexistência, abstraindo dessa ordem e dessa arquitetônica que permitem discernir, distinguir com precisão essas diversas entidades – como, por exemplo, Deus e o universo – exatamente tal Deus, tal universo, coordenando tal ou qual plano de existência a tal ou qual nível superexistencial.

Também não admitamos tão facilmente que, indo suficientemente alto de imediato, encontremos por fim a unidade completa, a coordenação total. Pois, como sabemos (§ 105), só pode tratar-se de uma coordenação das próprias coordenações (com todas as suas diversidades possíveis), e desse terceiro grau, talvez abstrato, talvez puramente teórico, que em todo caso só poderia comunicar-se com o existencial pela mediação necessária das superexistências, segundo a ordem de seu Pleroma.

E que também não se diga: trata-se do ideal, e muito menos de existências ideais. Pois não há existência ideal; o ideal não é um gênero de existência. Ou melhor, no sentido usual e mais preciso do termo, é simplesmente o imaginário. O ideal é o imaginário perfeito. Seria mais útil e profundo evocar o “ideal transcendental” no sentido de Kant, ou seja, um princípio diretivo. Mas ainda assim seria um erro; pois tal princípio apenas enuncia um problema colocado (e para o pensamento, num sentido crítico). Ora, o que está em questão é o problema resolvido, na realidade de sua solução. Não esse ideal, mas a realidade desse ideal – eis o que importa.

É verdade que, do nosso ponto de vista, pode nos parecer algo a instaurar (é o caso principalmente desse homem mais real); e é na experiência da instauração que temos sua aproximação mais sensível. Mas isso (que é do nosso ponto de vista) não muda sua natureza, toda de realidade, que não se altera conforme nos aproximamos mais ou menos dela. No máximo, pode-se dizer que, na aproximação completa, no contato, deixaria de ser superexistência para ser existência. Mas isso é possível?

Enquanto isso, podemos dizer sobretudo que ele não existe (enquanto ainda não instaurado), se existir é estar no plano da existência, é ter optado por um modo de existência. No máximo, pode refletir-se em algum desses modos – per speculum in aenigmate; e mesmo assim não teria outra existência senão essa existência modal e especular. Ora, ele é demasiado rico em realidade para caber nesse plano, ou mesmo nos diversos planos de existência que reúne. 1

  1. Que também não se diga: trata-se de uma essência. Certamente trata-se de uma essência, mas isso não diz nada. Há também essências de existentes, que residem nesses existentes (é sua quididade existencial). E aqui trata-se da essência de superexistentes, residindo nesses existentes (é sua quididade de realidade). A palavra “essência” não acrescenta nada, não diz nada, e só desviaria para outros pontos de vista irrelevantes ao nosso problema. Repito: trata-se pura e simplesmente de realidade – de níveis de realidade que necessariamente transcendem a existência.[]