Meillassoux: qualidades primárias e secundárias

nossa tradução

Os termos “qualidade primária” e “qualidade secundária” vêm de Locke, mas a base para a distinção já pode ser encontrada em Descartes. Quando me queimo em uma vela, espontaneamente considero a sensação de queimação no meu dedo, não na vela. Não toco em uma dor que estaria presente na chama como uma de suas propriedades: o braseiro não se queima quando queima. Mas o que dizemos sobre afetos também deve ser dito sobre sensações: o sabor da comida não é saboreado pela própria comida e, portanto, não existe na última antes da ingestão. Da mesma forma, a beleza melodiosa de uma sequência sonora não é ouvida pela melodia, a cor luminosa de uma pintura não é vista pelo pigmento colorido da tela e assim por diante. Em resumo, nada sensível – seja uma qualidade afetiva ou perceptiva – pode existir da maneira que me é dado na coisa por si só, quando não está relacionado a mim ou a qualquer outra criatura viva. Quando alguém pensa sobre essa coisa ‘em si’, ou seja, independentemente de sua relação comigo, parece que nenhuma dessas qualidades pode subsistir. Remova o observador, e o mundo se torna desprovido dessas qualidades sonoras, visuais, olfativas etc., assim como a chama se torna desprovida de dor quando o dedo é removido.

No entanto, não se pode sustentar que o sensível seja injetado por mim em coisas como algum tipo de alucinação perpétua e arbitrária. Pois há de fato um vínculo constante entre as coisas reais e suas sensações: se não houvesse algo capaz de dar origem à sensação de vermelhidão, não haveria percepção de uma coisa vermelha; se não houvesse fogo real, não haveria sensação de queimação. Mas não faz sentido dizer que a vermelhidão ou o calor podem existir como qualidades tão bem sem mim quanto comigo: sem a percepção da vermelhidão, não há coisa vermelha; sem a sensação de calor, não há calor. Seja afetivo ou perceptivo, o sensível só existe como uma relação: uma relação entre o mundo e a criatura viva que eu sou. Na realidade, o sensível não está simplesmente “em mim” à maneira de um sonho, nem simplesmente “na coisa” à maneira de uma propriedade intrínseca: é a própria relação entre a coisa e eu. Essas qualidades sensíveis, que não estão nas coisas em si, mas em minha relação subjetiva com as últimas – essas qualidades correspondem ao que tradicionalmente se chamava qualidades secundárias.

No entanto, não são essas qualidades secundárias que descreditaram a teoria tradicional das qualidades. Que não faz sentido atribuir à “coisa em si mesma” (que é basicamente a “coisa sem mim”) aquelas propriedades que só podem surgir como resultado da relação entre a coisa e sua apreensão subjetiva tornou-se efetivamente um lugar-comum que poucos filósofos contestaram. O que foi vigorosamente contestado, na sequência da fenomenologia, é a maneira pela qual Descartes ou Locke conceberam essa relação: como uma modificação da substância pensante ligada ao funcionamento mecânico de um corpo material, e não, por exemplo, como um correlação noético-noemática. Mas não se trata de retomar a concepção tradicional da relação constitutiva da sensibilidade: tudo o que importa para nós aqui é que o sensível é uma relação, e não uma propriedade inerente à coisa. Desse ponto de vista, não é particularmente difícil para um filósofo contemporâneo concordar com Descartes ou Locke.

Isto deixa de ser o caso assim que alguém coloca em jogo o núcleo da teoria tradicional das propriedades, a saber, que existem dois tipos de propriedades. Pois o que descreditou decisivamente a distinção entre qualidades primárias e secundárias é a própria ideia de tal distinção: isto é, a suposição de que a “subjetivação” de propriedades sensíveis (a ênfase em seu vínculo essencial com a presença de um sujeito) poderia ser restringida à determinações sensíveis do objeto, e não estendidas a todas as suas propriedades concebíveis. Por “qualidades primárias”, entende-se propriedades que deveriam ser inseparáveis do objeto, propriedades que supõe pertencer à coisa mesmo quando eu não a apreendo mais. São propriedades da coisa como ela é sem mim, tanto quanto ela é comigo – propriedades do em-si-mesmo. Em que eles consistem? Para Descartes, são todas as propriedades que pertencem à extensão e, portanto, estão sujeitas a provas geométricas: comprimento, largura, movimento, profundidade, figura, tamanho. Por nossa parte, evitaremos invocar a noção de extensão, uma vez que esta última é indissociável da representação sensível: não se pode imaginar uma extensão que não seria colorida e, portanto, que não estaria associada a uma qualidade secundária. Para reativar a tese cartesiana em termos contemporâneos e para declará-la nos mesmos termos em que pretendemos defendê-la, manteremos, portanto, o seguinte: todos os aspectos do objeto que podem ser formulados em termos matemáticos podem ser concebidos de maneira significativa como propriedades do objeto em si. Todos os aspectos do objeto que podem dar origem a um pensamento matemático (a uma fórmula ou a digitalização) e não a uma percepção ou sensação podem ser significativamente transformados em propriedades da coisa, não apenas como é comigo, mas também como é sem mim.

A tese que defendemos é, portanto, dupla: por um lado, reconhecemos que o sensível só existe como relação do sujeito com o mundo; mas, por outro lado, mantemos que as propriedades matematizáveis do objeto estão isentas da restrição de tal relação e que estão efetivamente no objeto da maneira como as concebo, se estou em relação a esse objeto ou não.

Ray Brassier