MacIntyre (DV:13-15) – metáfora sobre a moralidade atual

Jussara Simões

Imaginemos que as ciências naturais viessem a sofrer as consequências de uma catástrofe. A opinião pública culpa os cientistas por uma série de calamidades ambientais. Há revoltas por toda parte, laboratórios são incendiados, cientistas são linchados, livros e instrumentos são destruídos. Por fim, um movimento político chamado “Nenhum saber” assume o poder e, sucessivamente, elimina o ensino de ciências nas escolas e nas universidades, aprisionando e executando os cientistas restantes. Mais tarde, há uma reação contra esse movimento destrutivo e pessoas esclarecidas tentam ressuscitar a ciência, embora tenham esquecido em grande parte o que ela tinha sido. Só possuem, porém, fragmentos: conhecimento dos experimentos isolados do contexto teórico que lhes dava significado; partes de teorias desvinculadas seja de outros fragmentos de teoria que possuem, seja de experimentos; instrumentos cujo uso foi esquecido; capítulos de livros pela metade, páginas soltas de artigos, nem sempre legíveis porque estão rasgadas e chamuscadas. Não obstante, todos esses fragmentos são reunidos num conjunto de práticas que recebem os nomes restaurados de física, química e biologia. Os adultos discutem entre si os méritos das teorias da relatividade, da evolução e do flogisto, embora seus conhecimentos sobre cada uma delas sejam apenas rudimentares. As crianças decoram as partes que restaram da tabela periódica e recitam alguns teoremas de Euclides como se fossem encantamentos. Ninguém, ou quase ninguém, percebe que o que estão fazendo não é ciência natural em nenhum sentido adequado, pois tudo o que dizem e fazem obedece a certas leis da compatibilidade e da coerência, e os contextos que seriam necessários para dar sentido a aquilo que eles estão fazendo foram perdidos, talvez irrecuperáveis.

Em tal cultura, usar-se-iam expressões como “neutrino”, “massa”, “gravidade específica”, “peso atômico” em formas sistemáticas e, não raro, inter-relacionadas, que pareceriam em maior ou menor grau aos modos como eram usadas no passado, antes da perda da maior parte dos conhecimentos científicos. Porém muitas das teorias pressupostas pelo uso dessas expressões estariam perdidas e pareceria haver um elemento de arbitrariedade, ou mesmo de opção, em sua aplicação, que nos pareceria muito surpreendente. Haveria uma abundância de premissas rivais e concorrentes, às quais não se poderia oferecer outros argumentos. Surgiriam teorias subjetivistas das ciências e elas seriam criticadas pelos que afirmam que a ideia da verdade contida no que consideram ser ciência é incompatível com o subjetivismo.

Esse possível mundo imaginário é bem parecido com o que alguns escritores de ficção científica criaram. Podemos descrevê-lo como um mundo no qual a linguagem das ciências naturais, ou pelo menos partes dela, continua a ser usada, mas está num grave estado de desordem. Podemos observar que, se a filosofia analítica florescesse nesse mundo imaginário, jamais revelaria o fato dessa desordem, pois as técnicas da filosofia analítica são essencialmente descritivas e descritivas da linguagem do presente. O filósofo analítico conseguiria elucidar as estruturas conceituais do que se considerava ser o pensamento e o discurso científico no mundo imaginário precisamente da mesma forma como elucida as estruturas conceituais das ciências naturais como elas são.

A fenomenologia e o existencialismo também não seriam capazes de discernir nada de errado. Todas as estruturas da intencionalidade seriam o que são no momento. A tarefa de oferecer uma base epistemológica para esses falsos simulacros das ciências naturais não se distinguiria, em termos fenomenológicos, da tarefa que se contempla atualmente. Um Husserl ou um Merleau-Ponty estaria tão enganado quanto um Strawson ou um Quine.

Por que inventar esse mundo imaginário habitado por pseudocientistas fictícios e filosofia real, genuína? A hipótese que quero apresentar é a de que no mundo real que habitamos a linguagem da moralidade está no mesmo estado de grave desordem, da mesma forma que a linguagem das ciências naturais no mundo imaginário que descrevi. O que possuímos, se essa teoria for verdadeira, são os fragmentos de um esquema conceitual, partes às quais atualmente faltam os contextos de onde derivavam seus significados. Temos, na verdade, simulacros da moralidade, continuamos a usar muitas das suas expressões principais. Mas perdemos — em grande parte, se não totalmente — nossa compreensão, tanto teórica quanto prática, da moralidade.

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