Para Aristóteles seria insensato e mesmo ridículo (geloion) querer demonstrar a existência do ethos, assim como é ridículo querer demonstrar a existência da physis [[Ver Fis. II, 1, 193 a1-10. Sendo a physis um gnórimon ou um notum per se e, portanto, um princípio (arqué) da demonstração, querer provar a existência da physis seria uma apaideusía tôn analytikôn, uma ignorância dos procedimentos analíticos. Ver Fis. II, 1, 184 a16-b14, e W. D. Ross, Aristotle’s Physics, a revised text with introduction and commentary, Oxford, Clarendon Press, 1936, pp. 456-458; 501.]]. Physis e ethos são duas formas primeiras de manifestação do ser, ou da sua presença, não sendo o ethos senão a transcrição da physis na peculiaridade da praxis ou da ação humana e das estruturas histórico-sociais que dela resultam. No ethos está presente a razão profunda da physis que se manifesta no finalismo do bem e, por outro lado, ele rompe a sucessão do mesmo que caracteriza a physis como domínio da necessidade, com o advento do diferente no espaço da liberdade aberto pela praxis [[A physis é dita tou aei (sempre) e o ethos é tou pollákis (muitas vezes). Ver Aristóteles, Ret. I, 11, 1370 a7; Ét. Nic. VII, 9, 1152 a31.]]. Embora enquanto autodeterminação da praxis o ethos se eleve sobre a physis, ele reinstaura, de alguma maneira, a necessidade da natureza ao fixar-se na constância do hábito (hexis). Demonstrar a ordem da praxis, articulada em hábitos ou virtudes, não segundo a necessidade transiente da physis, mas segundo o finalismo imanente do logos ou da razão, eis o propósito de uma ciência do ethos tal como Aristóteles se propõe constituí-la, coroando a tradição socrático-platônica [[Ver Ét. Nic. I, capítulos 1-4; I, 7, 1094 a1 – 1098 b8. Ver I. During, Aristotéles-Darstellung und Interpretation seines Denkens, Heidelberg, Carl Winter, 1966, pp. 435-437; sobre praxis e natureza ver igualmente M. Ganter, Mittel und Ziel in der praktischen Philosophie des Aristoteles (Symposion 45), Friburgo na Brisgóvia-Munique, Karl Alber, 1974, pp. 47-51. Ver infra, cap. II, nota 119a.]]. A Ética alcança, assim, seu estatuto de saber autônomo, e passa a ocupar um lugar preponderante na tradição cultural e filosófica do Ocidente [[Em Platão, com efeito, não obstante sua posição fundadora na história do pensamento ético, a Ética é um capítulo da ontologia das ideias e não alcança o estatuto autônomo que lhe conferirá Aristóteles. Ver Ganter, op. cit., pp. 11-13; infra, cap. III, 1.]] e passa a ocupar um lugar preponderante na tradição cultural e filosófica do Ocidente.[[É sabido como, a partir da Primeira Academia, a Filosofia se divide em Lógica, Ética e Física. Ver Xenócrates, fr. 1 (Heinze) e o testemunho de M. T. Cícero Tusc. Disp., V, 24-25.]].
O termo ethos é uma transliteração dos dois vocábulos gregos êthos (com eta inicial [êthos]) e éthos (com épsilon inicial [éthos]). É importante distinguir com exatidão os matizes peculiares a cada um desses termos [[Ver P. Chantraine, Dictionnaire étymologique de la langue grecque: histoire des mots, Paris, Klincksieck, 1968, pp. 327; 407-408. É instrutiva, a propósito, a leitura dos dois verbetes sobre ethos no Index Aristotelicus de H. Bonitz (Graz, Akademische Druck und Verlagsanstalt, 1955, pp. 216-217; 315-316). Os matizes de ethos são sugeridos por Platão enumerando as qualidades dos Guardiães da cidade, “seu caráter e seus hábitos” (Leis, XII, 968 d). Ver ainda G. Funke, Ethos: Gewohnheit, Sitte, Sittlickeit apud Archiv fur Rechts und Sozialphilosophie, Berlim, 47; 1961, pp. 1-80 (aqui pp. 2-25).]]. Por outro lado, se a eles acrescentarmos o vocábulo hexis, de raiz diferente, teremos definido um núcleo semântico a partir do qual será possível traçar as grandes linhas da Ética como ciência do ethos. [[A polissemia dos termos que vieram a constituir o vocabulário fundamental da língua filosófica grega lança luz decisiva sobre a riqueza conceptual desses termos. Ver M. Untersteiner, Problemi di filologia filosofica, Milão, Cisalpina-Goliardica, 1980, pp. 249-321. Sobre a semântica da linguagem na introdução à Ética, ver E. Riondato, Ricerche di filosofia morale: I Elementi metodologici e storici. Pádua, Liviana, 1975, pp. 1-41. Ver ainda, J. Möller, Zum Begriff des Ethos und des Ethischen, apud, K. Ulmer (org.) Die Verantwortung der Wissenschaft, Bonn, Bouvier-H. Grundmann, 1975, pp. 8-25.]]
A primeira acepção de ethos (com eta inicial [êthos]) designa a morada do homem (e do animal em geral). O êthos é a casa do homem. O homem habita sobre a terra acolhendo-se ao recesso seguro do êthos. Este sentido de um lugar de estada permanente e habitual, de um abrigo protetor, constitui a raiz semântica que dá origem à significação do ethos como costume, esquema praxiológico durável, estilo de vida e ação. A metáfora da morada e do abrigo indica justamente que, a partir do ethos, o espaço do mundo torna-se habitável para o homem. O domínio da physis ou o reino da necessidade é rompido pela abertura do espaço humano do ethos no qual irão inscrever-se os costumes, os hábitos, as normas e os interditos, os valores e as ações [[Ao invés, o ethos do animal o encerra no espaço fechado do seu ecossistema, dando origem à Etologia como estudo do comportamento animal. Ver Aristóteles, Hist. An. 588 a 18.]]. Por conseguinte, o espaço do ethos enquanto espaço humano, não é dado ao homem, mas por ele construído ou incessantemente reconstruído. Nunca a casa do êthos está pronta e acabada para o homem, e esse seu essencial inacabamento é o signo de uma presença a um tempo próxima e infinitamente distante, e que Platão designou como a presença exigente do Bem, que está além de todo ser (ousia) ou para além do que se mostra acabado e completo [[Epékeina tês ousias, Platão, Rep. VI, 509 b.]].
É, pois, no espaço do ethos que o logos torna-se compreensão e expressão do ser do homem como exigência radical de dever-ser ou do bem. Assim, na aurora da filosofia grega, Heráclito entendeu o êthos na sua sentença célebre: êthos anthrôpo daímôn [[“O êthos é o gênio protetor do homem” (D.-K., 22, B, 119).]]. O êthos é, na concepção heraclítica, regido pelo logos,[[Sobre a interpretação da sentença de Heráclito, ver W. K. C. Guthrie, A history of greek Philosophy, Cambridge, Cambridge University Press, 1967, I, p. 482 e J. Lorite Mena, Du mythe à l’ontologie: glissement des espaces humains, Paris, Téqui, 1979, pp. 633-637. É conhecida a leitura heideggeriana desse texto em Brief uber den Humanlsmus, Berna, Francke Verlag, 2a ed., 1954, pp. 106-110, onde o êthos é interpretado como morada do homem enquanto ek-sistência, abertura ao Ser, cujo pensamento é a Ética original. Ver infra, cap. II, notas 48 e 49; cap. V, nota 74.]] e é nessa obediência ao logos que se dão os primeiros passos em direção à Ética como saber racional do êthos, assim como irá entendê-la a tradição filosófica do Ocidente.[[Com efeito, alguns intérpretes apontam no dito de Heráclito uma critica à figura mítica do Destino que pesa sobre a ação humana. Ver Guthrie, op. cit., p. 482, n. 1. Ver. no entanto, A. Magris, Lidea di destino nel pensiero antico, Udine, Del Bianco Editore, 1985, vol. I, p. 60.]]
A segunda acepção de ethos (com épsilon inicial [éthos]) diz respeito ao comportamento que resulta de um constante repetir-se dos mesmos atos. É, portanto, o que ocorre frequentemente ou quase sempre (pollákis), mas não sempre (aeí), nem em virtude de uma necessidade natural. Daqui a oposição entre éthei e physei, o habitual e o natural. O ethos, nesse caso, denota uma constância no agir que se contrapõe ao impulso do desejo (órexis). Essa constância do ethos como disposição permanente é a manifestação e como que o vinco profundo do ethos como costume, seu fortalecimento e o relevo dado às suas peculiaridades. O modo de agir (trópos) do indivíduo, expressão da sua personalidade ética, deverá traduzir, finalmente, a articulação entre o êthos como caráter e o éthos como hábito.
Mas, se o éthos (com épsilon inicial [éthos]) designa o processo genético do hábito ou da disposição habitual para agir de uma certa maneira, o termo dessa gênese do éthos – sua forma acabada e o seu fruto – é designado pelo termo hexis, que significa o hábito como possessão estável, como princípio próximo de uma ação posta sob o senhorio do agente e que exprime a sua autárkeia, o seu domínio de si mesmo, o seu bem. Entre o processo de formação do hábito e o seu termo como disposição permanente para agir de acordo com as exigências de realização do bem ou do melhor, o ethos se desdobra como espaço da realização do homem, ou ainda como lugar privilegiado de inscrição da sua praxis.