Lewinter: O Isso e o eu

nossa tradução

I. Por causa de si entendo aquilo cuja essência envolve existência, ou seja, aquilo cuja natureza não pode ser concebida senão existente.

III. Por substância entendo aquilo que é em si e é concebido por si, isto é, aquilo cujo conceito não precisa do conceito de outra coisa a partir do qual deva ser formado.

IV. Por atributo entendo aquilo que o intelecto percebe da substância como constituindo a essência dela.

V. Por modo entendo afecções da substância, ou seja, aquilo que é em outro, pelo qual também é concebido.

VII. É dita livre aquela coisa que existe a partir da só necessidade de sua natureza e determina-se por si só a agir. Porém, necessária, ou antes coagida, aquela que é determinada por outro a existir e a operar de maneira certa e determinada.

Estas definições de Espinosa (Ética, parte 1 1) aplicam-se tão perfeitamente às concepções groddeckianas do Isso, do eu e de seus relacionamentos, que nos permitem identificar o “Sistema” metafísico que sustenta e justifica as declarações e posições de Groddeck.

O termo “Isso”, com seu significado já constituído, aparece nos escritos de Groddeck antes de ele descobrir a psicanálise: foi usado em 1909, mas ainda em conjunto com o termo Deus-Natureza, que revela onde é formado o pensamento de Groddeck.

O termo Deus-Natureza – ou seja, o conceito de Isso – é emprestado dos seguintes versos de Goethe: “Was kann der Mensch im Leben mehr gewinnen /als dass sich Gottnatur ihm offenbare/ : Wie sie das Feste lässt zu Geist verrinnen,/wie sie das Geistgezeugte fest bewahre”(O homem, o que ele pode ganhar mais na vida, exceto que para ele Deus-Natureza se revele: como ela faz se liquefazer em espírito o que é sólido, como ela conserva solidamente o que o espírito criou); e esses versículos adotam as ideias do Fragmento sobre a Natureza, escrito por Goethe após o estudo da Ética; o que explica a relação singular entre o Isso e a substância. Groddeck se forma em Espinosa tal qual Goethe se “informou”.

Quanto à dialética do Isso, ela se encontra definida em dois outros textos de Goethe, aos quais Groddeck, mesmo após sua descoberta da psicanálise, continua a se referir: o West-Östlicher Diwan, que contém o conceito-verso fundamental “Stirb und werde “(morra e advenha, em Selige Sehnsucht, Nostalgia extática), e – devemos dizer, naturalmente? – o segundo Fausto. Nietzsche, ao contrário do que Freud afirma, não foi, portanto, decisivo na escolha do termo “Isso”, no que diz respeito ao seu significado, mesmo que Zaratustra, afirmando a lei do retorno eterno, impregne especificamente o “espinozismo” de Groddeck, como ele impregna “criptomnesicamente” toda a psicanálise.

Groddeck o reafirma sem cessar (cf. O Livro do Isso, Do Isso, O Isso e a Psicanálise, etc.): o Isso é eterno e infinito, imutável e indivisível. É o princípio da vida, que age sobre tudo, determina sua criação e sua destruição, sem nunca “nascer” nem “morrer” com ela: “Deus é a causa imanente, mas não transitiva, de todas as coisas” (Ética, prop. 18/1). O Isso, portanto, não é idêntico à sua criação, difere essencialmente dela: a essência das coisas produzidas por Deus não envelopa a existência necessária, enquanto a essência de Deus envelopa sua existência. Em outras palavras, “tudo o que existe está em Deus e nada pode estar sem Deus, nem ser nem ser concebido” (prop. 15/1): tudo o que existe é “natureza naturada”, que manifesta aquilo que não é ela, “natureza naturante”.

Os atributos do Isso – como os da substância – são o pensamento e a extensão, dos quais a psique e a physis humanas são as modificações. A relação entre o eu e o Isso é aquela que Espinosa coloca entre o homem e Deus: “Segue-se que a essência do homem é constituída por certas modificações dos atributos de Deus. Porque o ser da substância não pertence à essência do homem. É, portanto, algo que está em Deus e que sem Deus não pode nem ser concebido, ou seja, um afeto ou um modo que exprime a natureza de Deus de uma maneira certa e determinada ”(coroll. prop. 10/2).

Para Espinosa, “da necessidade da natureza divina deve seguir em uma infinidade de modos uma infinidade de coisas, quer dizer, tudo o que pode cair em um entendimento infinito” (prop. 16/1) ; e de todas essas coisas que se atualizam na duração, a ideia é dada na substância eterna, que é a instantaneidade. Há existência simultânea de Deus em sua infinitude e sua finitude: em seus atributos e suas modificações, que dela não alteram a essência.

Esta existência simultânea da substância em sua infinitude naturante – como ser eterno – e em sua finitude naturada – como aparecer temporal – resolve a aparente contradição das duas afirmações constantes de Groddeck: como que o Isso é por definição não pessoal, imutável, indivisível e atemporal, toda postulação de um Isso pessoal, histórico e “sexionado” é, portanto, um sem sentido, um conceito fictício; e como que o ser humano é constituído, vivido por um Isso particular, que por si só não é simples, mas composto ad infinitum, uma vez que cada órgão e cada célula do órgão possui um Isso particular, que estabelece suas relações específicas com o homem e o universo. Para cada aparecer determinado, um ser ele mesmo determinado é dado no ser determinante enquanto ele se exprime em seu parecer.

A coexistência dos dois termos, o primeiro é intransitivo e o segundo é transitivo, define a natureza da “realidade” segundo Groddeck: como símbolo, uma aparência passiva que se refere a um ser ativo; onde o aparecer é sempre “sexionado” – separado de seu termo original – onde o ser não é indivi-dualidade. O exercício analítico é então, efetivamente, “abordagem” do Isso: decriptar do aparecer, ou símbolo, apreender do Isso determinado que aí se exprime como a expressão ela mesma do Isso determinante.

O Isso – como substância – enquanto causa de si é livre, mas não “voluntária”: a vontade, na verdade, como livre arbítrio, é arbitrária – uma escolha entre possibilidades equivalentes, algumas das quais são eliminadas, de onde resultaria uma imperfeição, uma não-totalidade do Isso, que poderia ser diferente do que é –. O Isso, enquanto ideia infinita, age de acordo com a necessidade de sua própria natureza, que é a perfeição, e o Isso, como uma ideia finita, age a cada vez determinado absolutamente por outra ideia finita, ela mesma determinada: ele ignora a vontade. E é precisamente essa impossibilidade de uma vontade que, para Groddeck, como para Espinosa, torna possível o conhecimento e a análise: é este determinismo rigoroso que permite ao analista encontrar para todo fenômeno, neste caso o sintoma, a causa do qual é efeito.

Pensamento e extensão, como os atributos da substância, do Isso, sempre expressam a mesma substância única, o Isso; da mesma forma, a psique e a physis humanas, como modos destes atributos, são sempre uma só e mesma coisa, mas expressas de duas maneiras (escólio prop. 7/2). O monismo de Groddeck, de fato, é um paralelismo psicofísico, em que “a ordem e a conexão das ideias são as mesmas que a ordem e a conexão das coisas” (prop. 7/2). Além disto, “tudo o que acontece no objeto da idria que constituindo a Alma humana deve ser percebido por esta Alma; em outras termos, uma ideia é necessariamente dada nela” (prop. 12/2); o objeto da ideia constituindo a Alma humana sendo o Corpo.

Se o Corpo, a physis humana, fosse simples, a ideia que teria a Alma, a psique humana, o seria igualmente: o homem teria um conhecimento adequado de si. Mas, como vimos, para Groddeck e Espinosa, o Corpo Humano não é simples mas “composto por um número muito grande de indivíduos (de natureza diversa), dos quais cada um é muito composto” (http://www.ethicadb.org/213p3″>postulado 1/2). Portanto, segue-se que “a ideia que constitui o ser formal da Alma humana não é simples, mas composta por um número muito grande de ideias” (prop. 15/2). O Isso humano é composto de uma multiplicidade de Isso, o que faz com que a causa de um fenômeno não seja simples, mas complexa, a ponto de o homem nunca ter dele mais do que um conhecimento fragmentário.

Também resulta desta multiplicidade que o homem pode ser afetado pelo mesmo objeto de várias maneiras, e que vários objetos podem afetá-lo da mesma maneira, finalmente, que os “indivíduos” que compõem o Corpo humano podem despertar na Alma humana a ideia de objetos ausentes: um objeto que já foi associado por um outro “indivíduo” a outro objeto, agora ausente, despertando nesse “indivíduo” a ideia deste objeto, que ele se “representa”. A natureza composta de sua psique e de sua physis leva o homem a “imaginar”: o induz a um conhecimento inadequado, que acordar por associação de ideias uma existência presente a coisas ausentes.

Original

  1. Trad. Grupo de Estudos Espinosanos[]
  2. Trad. Ch. Appuhn. Éd, Garnier-Flammarion[]