Kierkegaard (TD:60-62) – desespero do possível ou carência de necessidade

José Xavier de Melo Carneiro

Este fato, como vimos, liga-se à dialética. Em face do infinito a finitude limita; da mesma forma a necessidade desempenha, no campo do possível, a função de reter. O eu é dado, imediatamente, como síntese de finito e de infinito, existe em potência; em seguida, para vir a ser, projeta-se sobre a tela da imaginação e é isso o que lhe revela o infinito do possível. O eu em potência contém tanto de possível como de necessidade, porque é ele mesmo, mas deve realizá-lo. O eu é necessidade, porque é ele mesmo, e possível, por que deve realizá-lo.

Se o possível arruina a necessidade e o eu se arremessa e se perde no possível, sem vínculo que o prenda [65] à necessidade, temos o desespero do possível. Esse eu torna-se então uma abstração no possível, esgota-se a debater-se nele, sem contudo mudar de lugar, pois seu verdadeiro lugar é a necessidade: tornar-se si mesmo é com efeito um movimento sem saída. Tornar-se é um partir, mas tornar-se si mesmo é um movimento sem partida.

O campo do possível não cessa então de crescer aos olhos do eu, este encontra aí sempre mais possível, visto que nenhuma realidade se forma. Por fim o possível tudo tudo abarca, mas é que então o abismo tragou o eu. O menor dos possíveis requereria algum tempo para realizar-se. Mas esse tempo necessário para torná-lo real, de tal modo se abrevia que finalmente tudo se esmói em poeira de instantes. Os possíveis tornam-se cada vez mais intensos, mas sem que deixem de ser possíveis, sem que se tornem algo real, pois não há, com efeito, intensidade, se não houver passagem do possível ao real. Tão logo o instante revela um possível, logo outro surge, e estas fantasmagorias desfilam finalmente com tal rapidez que tudo nos parece possível, e atingimos então esse instante extremo do eu, em que ele mesmo não é mais que uma miragem.

O que lhe falta agora é o real, como também o exprime a linguagem comum quando se diz que alguém saiu da realidade. Mas olhando as coisas mais de perto, é de necessidade que ele carece. Porque, sem desfeita aos filósofos, a realidade não se une ao possível na necessidade, mas é esta última que se une na realidade ao possível. Não é também por falta de força, pelo menos no sentido vulgar, que o eu se extravia no possível. O que lhe falta, no fundo, é a força de obedecer, de se sub-meter à necessidade inerente ao nosso eu, ao que se pode chamar as nossas fronteiras interiores. A infelicidade de um tal eu não consiste em não ter chegado a nada neste mundo, mas em não ter tomado consciência dele mesmo, em não se ter apercebido de que este eu é o seu, é um determinado preciso, logo, uma necessidade. Em vez disso, o homem perdeu-se deixando o seu eu refletir-se imaginariamete no possível. Ninguém pode ver-se a si mesmo num espelho, sem se conhecer previamente, caso contrário não é ver-se, mas apenas ver alguém. Mas [66] o possível é um espelho extraordinário, que não se deve usar senão com grande prudência. É na verdade um espelho que podemos chamar de mentiroso. Um eu que se olha no seu próprio possível é apenas semiverdadeiro, porque, nesse possível, está muito longe de ser ele mesmo, ou só o é pela metade. Não se pode saber ainda o que, em continuação, decidirá a sua necessidade. O possível faz como a criança que recebe um convite agradável e diz logo sim; resta saber se os pais o consentirão… e os pais exercem o papel da necessidade.

O possível contém, de fato, todos os possíveis, logo, todos os extravios, mas especialmente dois. Um, em forma de desejo, de nostalgia e o outro de melancolia imaginativa (esperança, temor ou angústia). Como o cavaleiro de tantas lendas, que vê subitamente uma ave rara e resolve persegui-la, julgando-se a princípio prestes a atingi-la… mas a ave sempre de novo ganha distância até que a noite cai, e o cavaleiro, longe dos seus, na sua solidão, já não sabe o caminho: assim o possível do desejo. Em vez de referir o possível à necessidade, o desejo o persegue até perder o caminho de regresso a si mesmo. Na melancolia o contrário sucede, mas de maneira idêntica. O homem com um amor melancólico empenha-se na perseguição de um possível da sua angústia, que acaba por afastá-lo de si mesmo e o faz perecer nessa angústia ou nessa mesma extremidade na qual ele tanto temia perecer.

Ferlov & Gateau

Hong & Hong