Kant, as fantasmagorias

(MDM1996)

“Nem pela experiência possível1 — isso visa excluir os encontros com as fantasmagorias 2 [Gespenster] e com as ideias fantasmagóricas [Hirngespinste], o que em francês se traduz por “quimera”. Aquilo de que fala Swedenborg está extra-campo da experiência possível. “Nem pelo entendimento puro” — isso visa [73] excluir todo discurso positivo acerca do mundo inteligível de acordo com Leibniz. Leibniz e Swedenborg são sempre reunidos, quando Kant reflete sobre as formas do transcendente. Nas últimas páginas da “Analítica transcendental”, ele realiza assim uma dupla tarefa: a reflexão transcendental sobre a oposição real não é suficiente para revelar a negatividade do númeno. É preciso falar do númeno por meio de uma sequência de frases negativas, a fim de mostrar que o pensamento não está aí nas condições exigidas para que o juízo constitua objetos. Essa sequência de frases negativas fornece uma primeira determinação do “conceito vazio sem objeto”. A discussão com Leibniz, graças à redefinição transcendental da negação, é suficiente para estabelecer esse ponto. Mas, com isso, não estamos ainda no âmbito da filosofia crítica, isto é, da problemática do limite. Esta só é posta por Kant quando ele dispõe o lugar vazio do númeno. A crítica lógica a Leibniz não bastava para produzir tal noção de lugar vazio. Qualificar negativamente o númeno não é suficiente para pensar o limite, o que só é feito ao se pensar o númeno como lugar vazio. No discurso, isso só é possível quando o negativo também qualifica o conhecimento de objeto: “Visto que a intuição sensível não se dirige a todas as coisas, resta lugar para muitos outros objetos…”.

A noção espacial de limite, que faz do númeno não apenas um ser negativo, mas um ser além, um ser que tem um lugar transcendente, só é possível no discurso pelo uso da negação aplicada aos dois termos que, desde então, o limite virá a separar. Kant recorre, por um momento, a um discurso negativo sobre a intuição sensível, para que a negatividade do númeno possa ser pensada como lugar vazio, além. É porque a negação qualifica alternadamente o númeno e em seguida o fenômeno que a noção de limite pode ser introduzida ao longo do discurso. Mas, nessa instalação do númeno para além de todo lugar preenchido, Kant não lida apenas com Leibniz. Seu interlocutor é também Swedenborg. Loi o pensamento deste último que, em 1766, ele precisou de fato instalar num além do qual não voltasse. Uma vez pensada em relação ao sábio sueco, a noção crítica de limite e de limitação pôde [74] ser aplicada também a Leibniz, e vir qualificar o númeno não apenas de negativo, mas de transcendente, no sentido de lugar vazio. Só assim se explica que Swedenborg continue a avizinhar-se de Leibniz na Crítica da razão pura.

 

  1. Kant, OEuvres phil., I, p. 1009; Suhrkamp, III, p. 305; Ak. B p. 345, A pp. 288-289.[]
  2. A tradução de fantasme, no sentido psicanalítico, por “fantasma” levou-nos a traduzir por “fantasmagoria” o que em francês aparece como fantôme, literalmente também “fantasma”, só que no sentido em que no ocultismo se fala de aparições de espíritos dos mortos no mundo dos vivos. (N. da T.)[]