Karl Jaspers, Filosofia da Existência. Trad. Marco Aurélio de Moura Matos.
Conferências pronunciadas na Academia Alemã de Frankfurt
À MEDIDA QUE EU ELUCIDO a esfera da realidade abrangente para mim mesmo, as sombrias paredes da minha prisão se tornam transparentes. Vejo o espaço livre, e tudo que existe pode tornar-se a mim presente. À medida que, então, verifico a verdade que há de revelar o ser a mim, é como se eu seguisse a luz e me tomasse livre. – Mas enquanto essa luz não incidir em alguma coisa, eu e todas as coisas comigo parecemos estar dissolvidos na não-realidade pela sua radiação. Pareço morrer de lucidez. Não posso amar porque nada é real tanto em mim quanto perante mim. Deve haver qualquer coisa que cresce na luz da verdade: o problema da realidade em si mesma permanece como o problema fundamental do filosofar.
MESMO ANTES DE COMEÇARMOS a filosofar, o problema da realidade parece já estar respondido em cada um dos momentos da nossa vida. Lidamos com coisas, e obedecemos aos modos de realidade como foram a nós transmitidos. Existe esta existência humana, existem estas exigências e estas leis; as relações humanas têm um arranjo ordenado e há maneiras corretas de governá-las. Os corpos existem, encontramos a regularidade causal nos processos naturais. Os átomos existem, e existe a energia. Há técnicas para dominar a natureza; a natureza parece digna de confiança, embora os resultados técnicos do nosso conhecimento frequentemente surjam de maneiras ligeiramente diferentes das que irrompiam da magia primitiva – com tão pouca compreensão e mais ou menos a mesma falta de pensamento.
Nesta atitude não-inquisitiva atingimos uma visão aparentemente adequada quanto à presença de realidade. O problema surge somente quando me torno consciente de uma carência: quando desejo a realidade que ainda não conheço e que não é eu mesmo, quando esta realidade não pode ser deliberadamente atingida por ação produtiva e temerária ou planejamento no mundo, somente então começo a filosofar. Indago acerca da realidade.
Desejo conhecer a verdadeira realidade, como um todo, e avanço pela estrada da cognição.
Desejo ser; desejo não apenas a longevidade, mas ser o meu eu autêntico; desejo a eternidade – e avanço pela estrada da ação eficaz.
Se tomamos a primeira estrada – a busca do conhecimento – e desejamos conhecer o que a natureza realmente é, descobrimos que o que for que concebamos como tal não existe; é um aparecimento subjetivo para nós. Pouco a pouco vamos aprendendo estas coisas: em primeiro lugar, o escorço de perspectiva das coisas (na nossa primeira relação ou contato com o mundo da astronomia); em seguida, a subjetividade das qualidades secundárias (cor, som, etc.), e hoje em dia também a subjetividade das coisas tangíveis de espaço e tempo. A realidade física tornou-se cada vez mais estranha. Primeiramente, era concebida em termos de corpos, arranjados em espaço não-perspectival, sem relação com um indivíduo que percebe; depois, foi reduzida ao ser espacial subjacente de partículas que diferem umas das outras apenas quantitativamente em tamanho e movimento – e, finalmente, no momento, a natureza não pode nem mesmo ser imaginada, mas pode ser descrita apenas em fórmulas matemáticas. À medida que passamos a conhecer uma realidade insondavelmente remota, accessível apenas à mensuração, o mundo começou ao mesmo tempo, de uma forma misteriosa, a assumir o caráter de “aparência” para nós. No fim, éramos capazes de tomar esta aparência como a plena realidade, mais uma vez, mas de tal forma que agora a “verdadeira” realidade acha-se em lugar nenhum. Tudo é real à sua maneira e, ao mesmo tempo, tudo é apenas uma perspectiva.
A mesma coisa acontece ao nosso conhecimento a respeito da existência humana.
Os homens acreditam que compreendem sua própria existência realisticamente, seja em termos de fatos econômicos, ou de ação diplomática e política, dos diversos sistemas sociais, dos princípios espirituais, etc. Ao declararem certas conexões como básicas e fazendo originar o resto destas conexões como superestruturas secundárias, os homens são pegos numa consciência de realidade que prontamente se decompõe à luz do conhecimento crítico. Todos estes objetos de investigação são fatores indubitáveis; mas, mais uma vez, a realidade “autêntica” não pode ser com eles encontrada, seja onde for. Nem os objetos investigáveis nem a soma total ou outro qualquer arranjo deles abarcam nunca a totalidade.
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Embora a realidade pareça retroceder continuamente à medida que adquirimos um conhecimento determinado, de modo que o que a realidade seja nunca possa, em princípio, ser respondido pela investigação crítica, não obstante isto – os fatos individuais parecem permanecer com oreais. Um fato – diz-se – ou existe ou não existe; eis aqui alguma coisa inabalável; aqui pontos-de-vista mutuamente opostos e até mesmo hostis devem reconhecer alguma coisa de comum a todos eles; o que existe, o que aconteceu, o que foi feito, deve sempre ser conhecido, ou, pelo menos, cognoscível, a alguém. Mas ¡isto é um erro. Em primeiro lugar, cada coisa individual efetiva é inexaurível e, em segundo lugar, cada fato está sujeito à interpretação não-limitada e à re-interpretação. Se se deseja captar um fato de uma forma determinada, tem-se de construí-lo. “Todos os fatos são já teorias.” Cada fato isolado permanece inexaurível e sujeito a interpretação diversa complementar, mesmo quando se tenha posto de lado toda a ilusão, toda a falsidade patente, ioda a ofuscação, toda a supressão e todo o sigilo.
Tente eu apreender a realidade como um todo ou como um fato isolado, no final vê-se sempre o inatingível limite da pesquisa metódica.
No segundo caminho – o da ação – procuramos a realidade como o nosso próprio ser.
Nossa existência como tal nos deixa insatisfeitos em sua impulsão contínua e inacabada rumo a mais coisas, uma impulsão que carece de um objetivo final e que, crescentemente, realiza a sua própria falta de objetivo à medida que claramente antevê o seu próprio fim. Na ação, no trabalho, na fama e nas nossas atuações sobre a posteridade ganhamos tão somente uma segunda duração quanto a um termo ligeiramente mais extenso; mas n>ão podemos esconder de nós mesmos o fato no silêncio do universo.
Em seguida, buscamos a realidade do nosso próprio ser em nós mesmos como seres independentes. Mas, quanto mais resolutamente formos nós mesmos, tanto mais decisivamente aprenderemos que não somos nós mesmos através de nós mesmos sozinhos, mas que somos dados a nós mesmos. Até mesmo a nossa própria realidade autêntica como Existenz não é realidade “fundamental”.
À MEDIDA QUE EXPERIMENTAMOS alcançar uma apreensão da realidade por esses caminhos, de modo que, no fim de contas, possamos ou conhecer essa realidade ou sermos idênticos a nós mesmos, caímos num abismo. Desta forma, nem conhecemos a realidade como algo diverso de nós mesmos nem possuímos esta realidade em nós mesmos. Todos os caminhos – às ciências concretas, a qualquer espécie de conhecimento ontológico – nos levam, se nos ativermos a eles, apenas aos modos da realidade através dos modos do conhecimento que comprovam serem inadequados.
Até o presente momento, o nosso filosofar vem apenas dissipando as dificuldades. Na base deste filosofar crítico voltamo-nos para outra espécie de filosofar, no qual encontramos nosso caminho de volta à realidade. Estamos procurando um filosofar que comece por atender a iodos os possíveis modos de realidade, isto é, que deseje captar e conhecer estes modos sem limite, mas transcendê-los rumo à realidade em si mesma. E aqui é que está a dificuldade! Aqui o filosofar deve provar-se a si mesmo. Como isto se realiza pode ser mostrado apenas no processo concreto do próprio filosofar. Ã falta de espaço, os exemplos devem bastar. Vou escolher o pensamento abstrato, especulativo – no sentido estrito – e tentarei fazer com que o seu significado seja evidente meramente por meio de indicação:
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A REALIDADE AUTÊNTICA é o ser que não pode ser pensado em termos de possibilidade. Que significa isto?
Qualquer realidade, cuja existência eu compreendo através das causas que a produzem, poderia ter sido diferente sob circunstâncias diferentes. Considerada simplesmente como algo conhecido, qualquer realidade conhecida é uma possibilidade realizada; como objeto de pensamento retém o caráter de possibilidade. Até mesmo o mundo inteiro, considerado como objeto do meu pensamento, é um mundo entre vários mundos possíveis. Na medida em que eu conheço a realidade, postulo-a na esfera da possibilidade.
Quando lidamos com a própria realidade, todavia, a possibilidade cessa. A realidade é aquilo que já não pode mais ser traduzido em possibilidade. Quando aquilo que conheço é uma dentre muitas possibilidades, lido com aparência, não com a realidade em si mesma. Posso pensar acerca de um objeto tão somente se o penso como uma possibilidade.
A realidade é, portanto, aquilo que resiste a todo pensamento. Schelling expressou esta ideia assim: “O verdadeiro existente é precisamente aquilo que derruba o que quer que venha do pensamento.” (Schelling, II, 3, 161.) Q pensamento, por sisi mesmo, não pode alcançar a realidade. Encalha na realidade. Apenas através do refluxo da sua incapacidade pode fazer-nos sentir que o ponto crucial da questão é um salto rumo à realidade.
Urna realidade completamente pensável não mais seria uma realidade, mas apenas um addendum ao que é possível. Não seria uma origem, e, portanto, a coisa real, mas algo derivado e secundário. E, na verdade, somos subjugados por um sentimento de niilidade (nothingness) do momento em que imaginamos que transformamos toda realidade em concebilidade; quer dizer, do momento em que pusermos esta concebilidade total no lugar da realidade. Então o pensamento de que não há necessidade de haver qualquer realidade é um sinal de que a niilidade da concebilidade é em si mesma suficiente. Mas não é suficiente para nós, que, nesta niilização da realidade, experimentamos a nossa própria niilização. Pelo contrário, a consciência da realidade nos libera do ” mundo ilusório do que é meramente pensável. À medida que entramos em contato com a realidade no transcender, o pensamento não é para nós a coisa primordial; diferentemente, uma vez que o pensamento deve ser com-preendido na realidade no pensador e em seu refluxo em presença do impensável, é elemento derivado em comparação com a realidade. “Não é porque existe o pensamento que o ser existe”, afirma Schelling (II, 3, 161 n.), “mas porque existe o ser é que o pensamento existe.” Se o pensamento duvida até mesmo da realidade, Schelling responde em presença desta realidade impensável, preconceitual, primordial com estas palavras: “O infinitamente existente, exatamente porque o é, acha-se a salvo em relação ao pensamento e a toda dúvida.” (II, 3, 161).
Em acréscimo a isto, a realidade do que pensa é anterior ao seu pensamento. Somos senhores dos nossos pensamentos. Na medida em que somos reais não nos subordinamos a um sistema de pensamento ou a uma ideia de ser. O que penso é possibilidade, ainda em virtude do fato de que posso abarcá-la ou deixá-la intocada. Independentemente do que eu pense, meu próprio ser como um todo não se acha contido em qualquer pensar ou pensamento. Pelo contrário, meu pensamento está subordinado à minha realidade, a menos que esta realidade não seja eu mesmo mas um aspecto da minha empírica experiência que, à sua vez, tem justamente de subordinar-se a si mesma – ou então, a menos que não seja eu mesmo de maneira alguma, mas tenha desistido da minha realidade e esteja, inadvertidamente, submetido a uma outra coisa, qualquer que ela seja.
Dado que a realidade como pensamento afasta-se de nós permanecendo, não obstante, presente como o condutor que tudo engloba, e dado que a sua presença consiste no que nenhum pensamento pode transformar em possibilidade, o pensamento filosófico não significa que esvaziemos a inconcebilidade da realidade autêntica, mas que a intensifiquemos. A força do real é tornada palpável pelo colapso do pensamento.
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O pensamento especulativo deve ser defendido contra a compreensão incorreta:
Com o pensamento do real que não se torna possibilidade, penso o meu enfocamento diante da realidade. Se se utiliza da categoria de possibilidade a fim de transcender para a realidade, tanto a possibilidade quanto a realidade cessam de ser categorias. Se, todavia, ainda as transformarmos em categorias determinadas, isto é, as usarmos como conceitos a fim de adquirir um conhecimento da realidade além de toda possibilidade ao invés de usá-las para transcenderem rumo ao impensável, então teremos um pseudo-conhecimento da conhecida necessidade do real. Esta degenerescência do significado transcendente numa posse de conhecimento mostra-se pela maneira com que interiormente experimentamos estes pensamentos (porquanto meros pensamentos desligados de qualquer relação com a experiência são, de qualquer forma, vazios):
Mostramo-nos constrangidos em presença de uma realidade supostamente conhecida sem possibilidade. Porquanto o nosso movimento através da possibilidade é a própria respiração da nossa existência temporal, é uma condição da nossa liberdade. A facticidade brutal, a necessidade inexorável, as coisas não-ambíguas no ser, se são tomadas como sendo a realidade absoluta na forma em que as conhecemos – nos subjugam e nos sufocam.
No transcender genuino, onde não permitimos o pensamento refluir rumo ao conhecimento finito, são precisamente as possibilidades em cada um dos fenômenos, em tudo que podemos conceber, e na ambiguidade dos fatos que surgem, que permanecem invioláveis. Somente à medida que nos movermos através dessas possibilidades em nossa existência temporal é que, verdadeiramente, nos encaminhamos para uma paz que não é mais um mal-estar paralizador na presença da facticidade sem possibilidade, mas sim uma maravilha ante o ser eterno como se revela a si mesmo na infinitude das aparências temporais, e uma satisfação profunda no seio dessa maravilha.
Do momento em que penso, encontro-me novamente na esfera da possibilidade. Portanto, por um lado, o pensamento sempre nos fornece o domínio da possibilidade na aparência temporal onde a nossa liberdade e a nossa esperança têm a sua morada; e, consequentemente, de outro lado, o pensamento estaca diante da presença da realidade eterna sem possibilidade, em que não precisamos mais da liberdade, mas onde encontramos paz.
TENTAREMOS TORNAR a realidade perceptível através de um segundo exemplo: a Realidade surge-nos como historicidade.
A realidade eterna não pode ser encontrada nem como um outro que subsista intemporalmente, nem como algo permanente no tempo. Ao invés disso, a realidade acha-se presente a nós como transição. Adquire existência diante da iminência de afastar-se da existência. Não alcança nem a forma da duração perdurante nem a da ordem imutável, mas apenas a do soçobramento.
Esta não-subsistência e este caráter transicional da realidade fenomenal podem ser assim descritos:
1. O homem é a niilidade (nothingness) de um punhado mínimo de poeira no seio do universo sem limites – e é uma criatura de uma profundidade capaz de conhecer o universo, e de abarcá-lo dentro de si mesmo. É ambas as coisas, entre ambas as coisas. Seu ser titubeante não é uma realidade subsistente, residual, determinável.
2. A história humana não tem qualquer situação-final possível, nenhuma integralidade duradoura, nenhum objetivo. A qualquer momento é possível uma ultimação que seja, ao mesmo tempo, fim e declínio. A grandeza e a essência do homem colocam-se sob a condição do seu momento. A realidade se revela apenas à transição – e assim procede não no momento arbitrário de uma mera ocorrência, mas naquele momento pleno que é uma presença irrepetível, não-intermutável da própria realidade mesmo em sua evanescência, e que foi decidido para que nela se inserisse a Existenz, e em seu crepúsculo também para o espectador que busca esta inconcebível realidade com o seu entendimento.
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3. A realidade do mundo não se torna uma totalidade à qual o homem poderia tornar-se idêntico e, assim, conseguir o seu ser autêntico. Quando construída como mundo, a realidade é sempre perdida. As ideias de perfeição visando o todo apenas exibem uma harmonia ilusória, sejam sob a forma de um ordenamento definitivo de uma razão transparente, ou do todo de uma vida universal, da emergência contínua da justiça advinda do conflito, ou de séries cíclicas, de história de uma queda e da subsequente necessária restauração, ou concebida de outro modo.
Situado entre o nada e o tudo, continuamente em simples transição, carente da perfectibilidade de uma totalidade que tudo abarca, em qualquer situação o homem é real tão somente como histórico. Conceber a realidade como historicidade não significa conhecer a sua história e em seguida regular as ações dos indivíduos à base deste conhecimento (por exemplo, deduzindo-se tanto a tarefa da época presente, e a minha própria tarefa dentro dela, do conhecimento do lugar desta época numa integralidade de história). Ao contrário, significa penetrar até às origens tornando-se uno com a aparência temporalmente concreta da realidade em que me encontro.
Há muitas maneiras de formular esse quadro. Ter-se-á compreendido tudo erroneamente se se tomarem estas maneiras como regras de conduta; mas permanecerão autênticas se tomadas como indicadores dos modos da consciência histórica relativamente à realidade: satisfazer o momento; enfrentar o desafio da hora presente; realizar a função singular de cada qual; estar integralmente presente. Ainda mais: descobrir as profundidades do presente nos seus fundamentos no passado, e na esfera das possibilidades de que o futuro está emergindo: recordação e visão do futuro tornam-se a realidade do presente, e não as preocupações remotas de que nos valemos a fim de escaparmos do presente. Elevam o presente a um presente eterno. A realidade existe apenas no presente e, como tal, é histórica, irrepetível.
Tão somente pela historicidade é que me torno consciente do ser autêntico da transcendência – e tão somente através da transcendência é que a nossa existência efêmera adquire substância histórica.
TENTEMOS UM TERCEIRO exemplo: a realidade autêntica só existe para nós se for una.
Toda unidade é desde logo perdida quando o mundo passa a ser esclarecido pelo nosso conhecimento das realidades:
1. Todo progresso verificado no conhecimento mostra cada vez mais decisivamente que o mundo tal como o conhecemos contém descontinuidades entre os modos do ser. À medida que o nosso conhecimento se torna mais claro, assinalamos um abismo separador entre natureza inorgânica e vida, entre natureza e vida, entre vida e estado de consciência e espírito – e, não obstante, acima e além de todas essas descontinuidades existe uma união e uma unidade que, embora refluindo constantemente, é a presunção e a tarefa do conhecimento.
2. O homem não tem a capacidade de adequadamente ordenar o mundo como uma totalidade numa unidade, no sentido de dar uma final e permanente duração à sua existência. Cada um dos seus arranjos-do-mundo logo mostra-se como impossível, como portador dos germes de sua própria destruição – e mesmo assim lutamos incessantemente rumo a uma estruturação una, unificadora e auto-subsistente.
3. Quando o homem se torna consciente de sua própria eu-idade (selfhood) como origem, também se torna consciente, imediatamente, da fragmentação, primeiramente em sua incapacidade de realizar a sua eu-idade completamente e de dar unidade à sua existência e, em segundo lugar, na pluralidade de verdades das Existenzen o que se deparam, umas frente às outras. E, ainda assim, a característica essencial da Existenz em si mesma é o seu desejo de seguir avante em comunicação com o Uno que vincula até mesmo os mais distantes indivíduos e a que todo mundo pertence.
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Cada modo de fragmentação do ser é uma exigência sobre nós para que não vejamos a realidade em si mesma nos fragmentos. O impulso da nossa razão rumo à unidade conta como realidade genuína apenas o que é verificado na unidade, não na dispersão ou nessas pluralidades preliminares. Um Deus, um mundo, uma totalidade de fenômenos naturais, uma verdade, a unidade das ciências, a unicidade histórica no mundo onde algo é a nós essencial – estas são exigências que devem ser satisfeitas, ou do contrário efetivamente não só resulta o caos como as partes isoladas parecem perder a sua realidade.
Mas, ao tentarmos compreender a unidade caímos, continuamente, em erro. Sentimo-nos inclinados a tomar uma determinada verdade parcial pela verdade integral toda inteira (e, desta forma, absolutizar a imperiosa validade do conhecimento intelectual correto das coisas finitas no mundo na verdade em geral); ou tomamos o mundo como um todo como cognoscível de uma maneira uniforme (e absolutizamos um todo relativo de cognição física ou biológica no todo do ser em sisi mesmo) ou nos agarramos, sem disto nos apercebermos, à pré-suposição de que apenas um modo de humanidade é o verdadeiro ideal humano (e, assim, absolutizamos uma forma histórica).
Com efeito, a unidade não pode ser diretamente compreendida como algo imediatamente dado, como um item do conhecimento, uma ideia, ou uma instituição. Cada caminho rumo ao tornar-se consciente do ser em sisi mesmo como um ser meramente imanente leva a rupturas, descontinuidades, discrepâncias, inacabamentos. Até mesmo a nossa mais resoluta autoconscientização emerge com o conhecimento fundamental de que como possível Existenz podemos nos tornar em nós mesmos apenas com uma outra Existenz: mesmo a Existenz não é uma unidade que se contém a si mesma. Se há unidade, é apenas na transcendência. Do ponto de vista da transcendência, a unidade pode ser apreendida no mundo; podemos sentir o Deus uno na não-condicionada, nã exclusiva unidade da nossa auto-realização. Ao transcender toda unidade imanente, a unidade é realmente ela mesma. A unidade autêntica, como ponto nuclear sobre o qual toda a unidade no mundo gira, e como a unidade arquetípica de- toda unidade visível e refletida, acha-se na transcendência.
EM CADA UM DOS NOSSOS três exemplos fomos conduzidos a experiências similares:
1. A realidade reflui, até que se mostre firme tão somente na transcendência.
Cada vez que apreendemos a realidade em determinado conhecido, a pergunta emerge de novo: Que é a realidade em si mesma e como se faz ela presente? Perco transcendência quando antecipo-a e penso que já a tenho em algum mundo inteligível. Quando filosofamos precisamos resistir à inclinação para identificar a realidade com o que palpavelmente se acha presente, a possuí-la em formas que contemplamos, a desejar conhecê-la racional e confiadamente no pensamento especulativo. É sempre a mesma coisa: quando se tem a intenção de captar a realidade diretamente, quando sobre ela se fala imediatamente, e se imagina que a conhece em pensamento – em lugar de tocá-la no transcender como imagina a sua própria Existenz – exatamente quando se pensa que se está no ponto de captá-la através de operações críticas e adequadas, mostra-se ela com o hábito de retirar-se.
2. O caminho que o filosofar percorre rumo à realidade, ilustrado nestes exemplos, constitui uma espécie de pensamento que se utiliza das categorias a fim de ir mais adiante que as categorias. As categorias – como unidade, possibilidade, etc. – são as formas determinadas de objetos para nós. Ao transcender tais categorias parece que fazemos surgir como por encanto a realidade. No nosso pensamento, gostaríamos de continuar até ao ponto em que o pensamento fosse idêntico à realidade: mas, à medida que assim procedemos experimentamos o estouro do pensamento recuando da realidade. À medida que o pensar transcende-se a si mesmo na experiência deste estouro, pode fazer com que a realidade se torne presente àquele que pensa de uma maneira indireta e insubstituível.
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3. É uma experiência fundamental o fato de que a realidade não “exista” simplesmente. Do momento em que medimos pelos padrões do que é para nós concebível, de acabamento e de integralidade, de adequação e de duração, há sempre alguma coisa errada com o modo por que a realidade se apresenta a nós. É como se tivéssemos caído da realidade e a ela retornado tão somente por meio da verdade.
Consequentemente, cada surgimento temporal da realidade é também inadequado. O que quer que for que exista, deve tornar-se alguma coisa diversa.
E, portanto, o que sabemos diretamente do ser imanente é uma aparição de realidade somente se for transparente.
Se, agora, – mal compreendendo os nossos três exemplos – entendermos o pensamento especulativo como se, em lugar de nos ajudar a transcender, nos permitisse conhecer a realidade em si mesma por meio de concepções finitizáveis, pervertemos o pensamento numa coleção opaca e imanente de conteúdos racionais:
O fato em bruto não é a realidade sem a possibilidade. Se retirarmos a possibilidade de qualquer ser imanente e, então, postularmos este ser absolutamente como uma realidade cognoscível, fazemos com que a transcendência desapareça, com que a liberdade se enfraqueça e nos iludimos acerca da realidade.
A objetividade histórica e visível de indivíduos particulares não é a historicidade da Existenz. Identificar a historicidade, sob a forma de pluralidade histórica e de particularidade da existência, com a realidade absoluta é fazer com que a transcendência desapareça em mera voluntariedade.
Nenhuma forma concebível de unidade – seja numérica ou lógica – é a unidade da realidade absoluta. Uma unidade objetiva no mundo, conhecida, objetificada e tomada como tal, insistentemente, não é mais a unidade transcendente, mas alguma coisa restrita, isolada, mecânica ou sistemática.
E, não obstante, a transcendência está presente somente onde cessa a possibilidade; não está presente no tempo sem historicidade; e não carece de unidade.
4. A realidade e a experiência de realidade não são evidentes por si mesmas. Claro – a qualquer momento parece possível à realidade estar presente, mas na maior paute do tempo a realidade parece haver-se esvanecido. Opiniões, noções, costumes e sentimentos vitais são os portadores carentes de confiança de uma realidade fantasmática.
O confrontar a realidade, portanto, é sempre parecido com o partir uma ilusão, rompendo-a. É uma experiência nova, autêntica e fundamentadora.
Atinjo essa experiência do real tão somente se me tomo em mim mesmo. A transcendência é inaudível como ser mundano experimentável; sua voz só é audível para a Existenz. Minha própria realidade é determinada pela maneira com que sei e pelo que sei que a realidade é. Nossa proximidade da realidade é constituída pelas maneiras com que encontramos a realidade além da possibilidade e com que apreendemos sua unidade na e através da nossa historicidade.
Correspondendo à profundidade, ao poder e à extensão da nossa realização da Existenz há, por assim dizer, graus de presença e, por conseguinte, de realidade, de proximidade em relação à transcendência e de afastamento desta.
5. Em toda inadequação – ou seja, toda vez que a realidade não está presente em suas profundidades – somos instigados a sentir que o homem consegue paz somente no ser que seja a realidade em si mesma.
Uma fonte de assombro e de satisfação já se encontra no mero fato de que alguma coisa exista.
Mas o ponto crucial é este: este algo existe. Não nos mostramos conscientes da realidade no espaço vazio de não preocupação com a facticidade, mas apenas na paz que subjuga a preocupação causada pela facticidade da realidade – ou seja, numa paz adquirida, plenamente realizada.
Embora a paz só possa ser encontrada na realidade, esta realidade é audível por mim no tempo somente na linguagem da finitude. A forma em que eu penso acerca da realidade em tempos de extrema necessidade, numa situação fronteiriça, é uma característica básica da minha própria realidade. A satisfação básica, fundamental, só pode ser atingida na própria realidade, infinita e perfeita, a partir da qual e na qual tanto nós como todas as outras coisas para nós existem. Mas estamos conscientes desta realidade sempre tão somente por meio dos surgimentos nas situações históricas concretas.
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TODAS AS EXPERIÊNCIAS que analisamos convergem: em pensamento existencial tomo decisões filosóficas fundamentais segundo a maneira como apreendo a realidade:
1. A primeira decisão de fé filosófica é se é possível pensar-se o mundo como completo em sisi mesmo, ou se a transcendência guia o nosso pensamento.
A pretensão de pura imanência acha-se fundamentada na asserção de que tudo aquilo que é transcendente é uma ilusão, uma ilusão de pessoas destituídas de senso prático, um algo imaginário utilizado para fugir-se às asperezas da realidade.
A imanência impõe-se como o ser em sisi mesmo, porque somente ele é cognoscível. Somente a imanência pode tornar-se conhecida – e todo conhecimento diz respeito tão somente à imanência.
Não obstante, por causa de suas divisões, de sua fragmentação, de sua falta de unidade, da pluralidade de seu surgimento e de sua incompletitude, a imanência mostra-se como sendo frágil.
A despeito de todo poder momentâneo e da momentânea claridade de seu conhecimento, a mera imanência é opaca e superficial, carecendo da qualidade incondicional da lealdade, da continuidade de crescimento na luta amorosa e da presença da realidade autêntica. Permanece numa situação de luta desesperada e auto-encobridora pela existência, terminando em niilidade. Mesmo o amor, se permanece meramente imanente, carece das asas poderosas que lhe permitiriam plainar e amar todas as coisas dignas de amor mais clara e profundamente, como se só então todos os seres fossem revelados – torna-se uma paixão limitadora.
O que quer que seja que não atinja a transcendência parece miserável; meramente segue o seu curso e ou é inconsciente de si mesmo ou consciente de si mesmo como niilidade. No momento em que permite que o ser seja absorvido sem qualquer resíduo no que é conhecido, a transcendência esvanece-se de mim e torno-me opaco a mim mesmo.
Do mesmo modo, há uma alteração radicai na nossa consciência de ser no momento que passamos a experimentar originalmente, com todo o nosso ser, o tato de que a transcendência é para nós a realidade que abala toda existência.
Embora escondida, a transcendência acha-se presente no filosofar como realidade. Mas o que a transcendência parece dizer é sempre ambíguo. Devo arriscar-me à base de uma responsabilidade que não é anulada por qualquer revelação direta vinda de Deus. A transcendência é o poder através do qual eu sou eu mesmo: onde eu for verdadeiramente livre, é precisamente por causa da transcendência. Sua linguagem mais decisiva é aquela que fala através da minha liberdade.
2. A segunda decisão é a de se a transcendência me conduz para fora do mundo a uma negação do mundo, ou se ela exige de mim que viva e trabalhe somente no mundo. A fé filosófica acha-se vinculada ao mundo como a condição de todo ser para ele (de tal maneira que, na verdade, a filosofia acha-se em perigo constante de ser tornada vã por uma doutrina de imanência pura). Exige que se permaneça com as coisas no mundo e que não se deixe nada assumir a precedência sobre o fazer, com todos os nossos poderes que são requeridos aqui (a fim de perceber a linguagem permanentemente ambígua da transcendência no mundo e na realidade que dele advém), e ao mesmo tempo nunca esquecer a evanescência e a niilidade do todo em presença da transcendência. Em acréscimo ao conhecimento da finitude, a fé filosófica exige a historicidade como o único modo de realização. Exige uma atitude de altos princípios que não “deseja” a morte, mas a assimila em seu poder de nos forçar inteiramente no presente. Se a filosofia significa aprender a morrer, assim é não no sentido de que eu perca o presente na ansiedade produzida pelo pensamento da morte, mas, ao contrário, no sentido de que eu intensifique o presente por uma realização irreduzida e ativa sob o padrão da transcendência.
Portanto, a transcendência nada significa para nós se tudo que houver para nós assumir a forma de existência.
Daí, também, a transcendência significar tudo para nós, se cada uma das coisas existentes que tenham ser autêntico para nós o tenham somente em relação com a transcendência ou como um sinal para a transcendência.
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NESTA ESPÉCIE DE FILOSOFAR nossa averiguação da realidade é expressa, mas não ainda alcançada, em pensamento. A filosofia parece ser uma ineficaz e desapontadora espécie de pensamento; em lugar algum oferece ela a “autêntica” realidade. Porquanto pressupõe que, filosofando, aquele que pensa deseja apenas elevar a claridade e a fidedigna continuidade do que traz consigo e possa ser, e não que deseje obter alguma coisa que nunca soube e que por sisi mesmo não poderia ser. O último degrau no retorno à realidade deve ser galgado por cada pessoa ela mesma, segundo maneiras que não podem ser antecipadas. Tudo que podemos fazer filosoficamente é mostrar a maneira pela qual se pode enfocar a realidade através da verdade e apreender o ser, que sempre está presente e, ainda assim, nunca manifesto geralmente.
A religião dá ensejo a esperanças inteiramente diferentes. A realidade que fundamenta tudo é experimentada na religião como certa, garantida pela autoridade e como matéria de uma espécie de fé completamente diferente da fé do filosofar. A realidade fala e é apreendida no mito e na revelação.
A filosofia não pode produzir mito. Pois onde o mito ocorre, a própria realidade nele está presente. A filosofia só pode mover-se nos mitos e indiretamente chegar à certeza. Não pode tomar o lugar de revelação. Pois, se há revelação, a realidade se mostra através dela; a filosofia só pode silenciar se a realidade está aqui presente ?- mas imediatamente refletirá nas proposições correlatas, nas pretensões, nos fenômenos e nas exigências no mundo.
Caracterizaremos a religião como ela aparece quando olhada do ponto de vista da filosofia, portanto, de fora» Embora esses aspectos da religião inevitavelmente surjam, deve-se admitir que não são características adequadas da fé religiosa efetivamente existente e podem até desconhecê-la completamente. Selecionaremos umas poucas características desses sinais específicos. Os três exemplos que analisamos previamente, do transcender filosófico rumo à realidade, servirão como guias.
1. Onde quer que a realidade sem a possibilidade estiver presente, deve adquirir uma linguagem e tornar-se capaz de ser abordada, se tiver de estar aí para nós, Mas desde que a linguagem é pensamento e que os seus conteúdos são ideias, a linguagem imediatamente pensaria acerca da realidade de uma maneira que, novamente, a transformaria numa possibilidade atualizada dentre outras possibilidades.
Se a linguagem tiver de expressar a indubitável facticidade da realidade deve assumir a forma de pensamento, que, ao mesmo tempo, cesse de ser pensamento.
Os mitos e os contos de fadas são exemplos de uma tal forma. Uma estória se conta, não com uma intenção pragmática (isto é, com a intenção de tornar os eventos compreensíveis pela construção de uma adequada rede de causas e de motivos e, desta forma, juntando-os em alguma coisa que poderia também ter sido diferente), mas como um evento indubitável cuja eficácia torna a realidade só por isto palpável como um “desta forma é assim” ou “assim aconteceu”, sem que a pergunta acerca de uma outra possibilidade surja no seio do assombro. A realidade é simplesmente recebida como incompreensivelmente auto-evidente. Algo visual, sem conceitos ou sem a generalidade do pensamento, é aqui a forma em que o lodo da realidade é sentido. É precisamente quando nada explicam e quando são sem sentido pelos critérios da consequência racional da causalidade e do fim, que o mito e os contos de fadas podem apresentar uma grande profundidade e uma infinita interpretabilidade.
Mito e contos de fadas são apenas uma forma de linguagem da realidade. Em geral pode-se dizer: Realidade é aquilo que só pode ser narrado sob a forma de uma estória – p. ex.: que algo existe, de qualquer modo, antes que o nada, a facticidade do mundo real, os fenômenos primordiais como aparência desta realidade.
Somente a linguagem da imaginação – assim parece – toca a realidade que foge a qualquer investigação objetiva.
Somente atentando-se para os indícios do ser pode-se perceber esta realidade inquestionável; é como se, no ato de atentar-se, ocorresse uma transformação: não apenas na transparência, mas na necessidade não-fundamentada que não fosse mais o oposto da possibilidade.
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A linguagem da realidade transcendente é uma objetividade que tem uma origem incomparável e não-originável:
Porquanto para a filosofia é uma linguagem de sinais, de cifras. Para a religião, é a presença real da transcendência no mito e na revelação.
A alternativa comum, que só admite um símbolo não-real da imaginação ou uma realidade sensível-corpórea, nos impede de apreciar este fato básico e sua origem.
Efetivamente, ambos ocorrem:
Por um lado, uma reificação sensível, como, por exemplo, no Cristo ressurrecto, que passa através de portas fechadas, que aparece repentinamente a seus discípulos e faz com que Tomé, que até aquele momento mostrava-se cético, ponha um dedo nas suas feridas – e, por outro lado, a volatização em símbolos estéticos que preservam uma fascinação neutra sem qualquer presença real, mas se oferecem ao nosso gozo em formas sempre diferentes a partir da abundância infinita de tradição histórica.
Mas, em oposição a ambas as alternativas – ou melhor, prévio a ambas – está o elemento de originalidade: a Realidade não pode ser apreendida de nenhuma outra maneira senão pela percepção que acredita, acreditando na experiência. Está presente, mas somente quando se pode percebê-la das profundezas de sua própria eu-idade (selfhood).
Psicologicamente, é uma questão de imagens por meio das quais a fé se depara com a realidade. Caio em erro se me agarrar firmemente a essas imagens e pensar que adquiro a fé já feita-de-antemão em sua apresentação: a realidade presente na fé me foge. Porquanto a fé não é uma questão de imagens, mas sim da realidade daquilo em que acredito. Exatamente como a realidade do mundo é acessível através dos sentidos, a da transcendência é acessível através da fé-filosófica ou religiosa – cada caso como “o outro”. Um idealismo desnorteado transforma tanto o mundo dos sentidos quanto o da fé numa ilusão, e os faz criaturas do estado de consciência. Mas a filosofia levanta-se em presença da realidade.
A genuína presença da realidade transcendente não é, portanto, destruída por uma “iluminação”. A investigação mais clara do mundo-dos-sentidos só pode incrementar a genuína perceptibilidade da transcendência quando demole fixações e confusões supersticiosas.
É uma característica tendência da religião – na medida em que se pode ver de um ponto de vista do filosofar – deparar-se com a transcendência como um objeto sensível e particular no mundo, ou seja, como um objeto especificamente sagrado. Para a filosofia, por outro lado, a percepção da transcendência pode ocorrer em qualquer forma de sensibilidade e de realidade empírica, porquanto a localização e o fundamento desta capacidade perceptiva é a liberdade em suas formas históricas múltiplas. Em princípio, tudo pode tornar-se sagrado e nada é exclusivamente sagrado – geralmente e para todo mundo. Em outras palavras, em religião, a realidade simbólica do sinal parece estar transformada numa realidade finita sensível do supersensível – como na contemplação estética está reduzida à vacuidade de mera significação. A alternativa rejeitada involuntariamente surge novamente se as formas culturais, dogmáticas e institucionais dos conteúdos da religião forem vistas do ponto de vista da filosofia. O pensador filosófico pode estar capacitado a ter de prender-se aos símbolos de sua religião, talvez até mesmo com uma extraordinária espiritualidade. Repele toda violação desses símbolos. Os símbolos podem lhe falar segundo maneiras insubstituíveis, e podem tornar-se sinais para ele de realidade que é tanto mais insondável quanto mais deseje ele interpretá-la. Mas estes símbolos não podem preservar, para ele, a exclusividade do que é especificamente sagrado. Permanecem verdadeiramente símbolos para ele somente se são infinitos, ou seja, se não puderem ser incluídos em qualquer dogmatismo ou ação intencional.
Para a filosofia os sinais são a forma da realidade transcendente no mundo. Tudo no mundo pode ser sinal e nada é, necessariamente, um sinal para o entendimento. O sina! não pode ser interpretado por meio de qualquer outra coisa. Mas cessa de ser um sinal e se torna uma realidade empírica se exigir que seja percebido como uma forma separada e tangível de sacralidade que se isola no mundo.
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2. Filosoficamente, a transcendência pode sempre ser entendida historicamente. Significa isto, todavia, que a sua aparência objetiva não pode tornar-se válida e verdadeira para todos os homens. Para a fé revelada da religião, por outro lado, a transcendência acha-se contida numa forma histórica, única forma que é objetiva para todos, exclusivamente válida, e a condição da salvação de cada um.
Do ponto de vista da filosofia isto é uma transformação da própria historicidade. Uma vez que a profundidade da crença na revelação consistia em sua apreensão do fundamento intransitável da fé existencial em sua historicidade, esta transformação pode levar à perda da própria historicidade existencial. Porque a historicidade existencial deve negar a si mesma sua imediata fonte transcendente se, em lugar de viver na minha factual historicidade, deixo que se torne submergida numa única historicidade universal. Se acredito na absoluta realidade de uma única historicidade – que, em si mesma, é também meramente particular – e que se supõe deva absorver toda historicidade, rompo a comunicação possível com outra historicidade, de modo a forçar a outra na minha própria, como material.
O que se concede a cada um como sua historicidade, seu Uno, o que se ergue diante dele junto aos limites, é na verdade inseparavelmente vinculado a uma tradição comum. Esta tradição se torna tanto mais profunda, viva e concentrada quanto mais incorporar em sua própria recordação uma historicidade ampliada para englobar a pluralidade e o incessante dinamismo de todas as possibilidades humanas e realidades. Mas esta tradição comum – vista filosoficamente – não deve ser absolutizada na única historicidade absoluta do mundo para todos: primeiramente, porque outras historicidades têm os seus próprios direitos por virtude de suas mesmas origens, e seu espírito não deve ser destruído mas sim ganhar uma voz no processo temporariamente infindável do questionar e ser questionado; em segundo lugar, porque a insubstituível historicidade do indivíduo não deve fazer com que a imediaticidade e a autonomia de sua origem transcendente seja obliterada por subordinar-se na generalidade de uma única historicidade-mundo.
É a transformação desta Existenz que não se acha incluída dentro de si mesma, mas realiza-se historicamente em liberdade e em abertura a qualquer origem e ao incomensurável, na Existenz que se confina dentro de um determinado desempenho que nega todas as outras origens e que é feito obrigatoriamente para todos os homens e para todas as épocas. Para a filosofia, aqui parece que a razão foi abandonada.
3. Até mesmo o Uno surge transformado em religião – olhado do ponto de vista da filosofia. Tornou-se uma unidade visível, objetiva no mundo. Na crença na revelação, apreendo o Uno como esta unidade que é o Uno para todos os homens nesta forma particular histórica e que, a despeito de seu caráter histórico, universaliza a sua objetividade histórica. Não pertenço mais historicamente à minha igreja, mas absolutamente à igreja, que só ela é universal e verdadeira. Então o presente não mais é uma aparência de uma Existenz histórica entre outras, mas o todo-que-tudo-abarca. Os seguintes resultados indicam o caráter desta unidade:
A autoridade não mais está engajada na luta histórica mas, porque é una, é também absoluta, e fixada: –
Acredito num único livro retirado do passado, não no modo por que dou crédito aos grandes conteúdos dos outros livros, mas como o único, livro ímpar através do qual Deus revelou-se diretamente; e acredito nisto porque a igreja atual, com a sua visível garantia, afirma que este livro é o único, o livro sagrado e exige esta fé; –
Devo tomar todas as outras espécies de fé histórica como falsas, verdadeiras somente na medida em que este germe espalhado e estes fragmentos de verdade vivem nelas, mas que se tornaram realmente límpidos e verdadeiros na igreja única; –
Não há salvação para mim ou para os outros homens fora da igreja única; –
A unidade não mais existe de uma maneira frágil, mas materialmente e de modo perfeito; é de encontrar-se nesta forma da igreja única, visível e sagrada e na satisfação absoluta ganha em participar dela.
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JUNTAMENTE COM esta caracterização da religião em termos de sua diferença da filosofia – mesmo se esta caracterização não estivesse limitada a umas poucas características e mesmo que estas fossem completamente desenvolvidas – e em presença da monumental realidade histórica da religião, formulam-se perguntas que levantam dúvida sobre o significado e o poder do filosofar por causa de sua distância da realidade.
A primeira pergunta:
A religião dá o seu testemunho peio heroísmo no sofrimento e na ação, através das criações artísticas e da poesia, por meio de uma extraordinária espécie de pensar depositado peia teologia. Através de suas criações a realidade desta fé na transcendência traz a realidade da transcendência para uma posição incomparavelmente perto.
Posso, ao filosofar, agarrar-me tão resolutamente à realidade quanto o posso na religião? Tem a filosofia em si mesma esta realidade pela qual posso viver, e que, como a realidade religiosa, mostra-se firme em qualquer situação?
A resposta é esta: a realidade religiosa não é atingível pela filosofia. É outra, talvez, mais, do que a filosofia pode representar ou captar. A filosofia não tem nada de comparável à positiva qualidade da religião. Não obstante, o filosofar não se apresenta sem a sua qualidade positiva, embora seja uma qualidade cujo caráter básico parece a um filósofo ameaçada, se não perdida, na religião.
A fé filosófica é a substância de uma vida pessoal; é a realidade do homem filosofando em seu próprio terreno histórico, no qual recebe-se a si mesmo como uma dádiva.
Ao filosofar experimento a realidade da transcendência não-mediatizada, como a que eu mesmo não sou.
Embora incapaz de ser contida em qualquer instituição enquanto que talvez possível em todas elas, a fé filosófica fala e vive na comunicação da esfera do espírito filosófico — nesta conversação transformadora, compreensiva entre os pensadores nesta aparência de uma filosofia perene única que nunca é finalmente captada e que, a despeito da hostilidade e das diferenças básicas, vinculam os homens em reunião num todo de que todos participam mas que não é propriedade de ninguém.
A fé filosófica é a fonte indispensável de todo filosofar genuíno. Dela advém a luta dos indivíduos no mundo para experimentarem e investigarem as aparências da realidade com o objetivo de alcançar a realidade da transcendência de um modo cada vez mais claro. Mas fonte, luta e objetivo são somente realizados por um período, de forma histórica, nao repetível.
Porque é não-dogmática, a fé filosófica — na qual se capta a realidade — não é submissa a qualquer confissão de fé. Para esta fé o pensamento é a passagem que parte da origem trevosa e ruma para a realidade. Como mero pensamento é, portanto, sem valor, plena de sentido apenas através da sua eficácia em iluminar e apresentar possibilidades, através do seu caráter como ação interior e do seu poder de conjurar.
A segunda pergunta:
Nossa tentativa de caracterizar a realidade religiosa foi realizada do ponto de vista da filosofia, não de uma participação na realidade religiosa em si mesma. Não apresenta ela, desde o seu começo, uma atitude de rejeição da religião e uma suspeita de que há alguma coisa fundamentalmente errada acerca da religião, alguma coisa que é fundamentalmente não-verdadeira? Já não é ela um ataque è religião?
A esta pergunta podemos responder que, quando se fala acerca de religião do ponto de vista da filosofia, ou acerca de filosofia ao ponto de vista da religião, deve parecer ao objeto que a caracterização é inadequada. Filosofia e religião são compreendidas apenas por aqueles que são, em virtude de sua respectiva fé, indivíduos filosóficos ou religiosos. Seria provavelmente também um erro supor-se que uma pessoa que passa de uma espécie de fé a outra deve, assim, compreender a ambas porque experimentou, realmente, a ambas. Ao contrário, é de suspeitar-se que um filósofo que venha a uma fé religiosa nunca se engajou no filosofar autêntico. O que acontece a um crente religioso que vem a filosofar, todavia, é talvez uma questão de tensão dentro dessa mesma fé.
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As consequências dessa introvisão (insight) é que, dentro do ponto de vista filosófico, desenvolve-se uma posição que parece paradoxal quando medida pelo pensamento de uma única verdade universalmente válida:
a) A filosofia deve atracar-se com as pretensões feitas pela verdade fora da própria filosofia. Preocupa-se com o que nunca poderá vir a ser e sem o que ela não seria o que é. Como se acha relacionada com a religião, com a realidade apreendida na religião, e com a realidade dos crentes religiosos são perguntas básicas para um filósofo vivo, que não têm respostas finais.
b) Entre a filosofia e a religião existe um conflito. Na medida em que é um conflito acerca da verdade de preferência a um conflito sobre a existência mundana, e em que seja levado a efeito num espírito de razões, de fatos e de questões em lugar de sê-lo pela força, a seguinte regra tem validade: toda vez que a filosofia e a religião forem comparadas uma com a outra, ambas devem ser tomadas no mesmo nível, uma de forma não exaltada e a outra de forma não degenerada.
Uma filosofia cujo defensor carece de fé porque carece de Existenz, caindo, assim, no pensamento vazio e na asserção especiosa, caindo na mera imanência, e tornando-se enredado numa pretensão de conhecimento absoluto, não é mais filosofia do que uma religião que se fixa na representação sem espírito de um objeto alegadamente super-sensível. Quando tal acontece, a luta contra a esterilidade, contra os efeitos desintegradores e o caráter frívolo da filosofia é tão justificada quanto a luta contra a fanatização e as consequências destrutivas da superstição na religião, e contra a falta de Existenz em seus defensores.
Completamente diferente da animosidade em relação à religião, todavia, é o caráter essencialmente estranho ca religião à filosofia. O pensamento filosófico torna-nos conscientes de uma fonte que não encontra nenhuma expressão satisfatória na forma religiosa. Esta fonte recebe um preenchimento à medida que a filosofia nos desperta para a percepção de – ao invés de simplesmente nos oferecer a – realidade. Esta realidade aparece tão incompreendida quanto a realidade religiosa. É o que sustenta tudo na pessoa que filosofa e o seu mundo.
No seu distanciamento da religião, todavia, a filosofia não pode atacar como falsa uma religião que permaneça fiei à sua fonte. Ao filosofar, reconhecemos a religião como verdadeira de uma maneira que não compreendemos, reconhecemo-la numa presteza contínua e numa vontade questionadora de compreender. Mostrar-se em constante e renovada perplexidade através da religião pertence à própria vida da filosofia. A relação entre a filosofia e a religião é um conflito que, pela sua natureza, cessa de ser levado avante pela filosofia quando esta alcança aquele ponto decisivo que não mais compreende. No filosofar afirmamos a existência de religião eclesiástica como a única forma da substancial tradição a que a tradição da filosofia, também, acha-se vinculada. Podemos nos tornar absorvidos com a filosofia na tensão da realidade religiosa, não, entretanto, como uma fundamentação, mas sim como um polo sem o qual até mesmo a religião parece a nós desaparecer.
Desta forma, onde quer que as asserções gerais e as pretensões que afirmam validade no mundo para todas as pessoas se formulam do ponto de vista da religião, penetramos no meio comum da pergunta e verificação e nos engajamos num conflito que nunca termina.
c) Nisto, a filosofia pressupõe que o seu pensamento, que parece por em perigo a religião, não pode na verdade ser uma ameaça a uma autêntica religião. O que não enfrenta o pensamento não pode ser genuíno; nem pode sê-lo o que recusa-se a ouvir e a ser questionado. O pensamento inexorável fará com que aquilo que possua uma origem autêntica se levante mais pura e limpidamente. A religião degenerada, todavia, fica justificadamente exposta ao perigo do ataque.
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A terceira pergunta:
A história dos últimos séculos mais próximos parece indicar uma lição premente: a perda da religião muda tudo. Destrói tanto a autoridade quanto a exceção. Tudo parece frágil e duvidoso. Nada não-condicionado permanece quando se tira a conclusão de que nada é verdadeiro, de que tudo é permitido. Juntamente com a perplexidade resultante de mostrar-se a gente incapaz de encontrar um terreno firme, um fanatismo estreito, sufocante e destituído de pensamento emerge. Se a religião, como a presença do transcendente esvai-se, assim também se esvai a realidade autêntica. A religião tornou-se impotente. É como se fosse uma figura externamente brilhante mas internamente em declínio – um empurrão e ela cai sem resistência na poeira, misteriosamente arrastando com ela aquele que a empurra.
Todas as forças que ameaçam a religião são então consideradas ruinosas para a humanidade em geral. Entre elas, a filosofia e as ciências parecem incluir-se. Por causa da popularização da filosofia nos últimos tempos, uma quantidade de pensamentos vazios de “iluminação”, acrescentados a um dogma intelectual, tornaram-se propriedade comum. À medida que todos passaram a compartilhar das ciências, uma crença supersticiosa em doutrinas pobremente compreendidas tornou-se difundida.
Durante esta mesma época, uma perda de consciência de humanidade ocorreu, particularmente uma irresistível submersão até mesmo da capacidade de compreender e de apreciar as habilidades humanas, os destinos humanos e as aspirações emergentes, que, até o século dezenove, tinham sua expressão na poesia e a sua realidade em homens de carne e osso. Quando Homero, Sófocles, Dante, Shakespeare e Goethe significam cada vez mais menos para o povo, ouve-se a acusação de que as responsáveis são a ciência e a filosofia. Não ensinaram elas às pessoas a duvidarem de tudo, segundo um pensamento superficial? Não bloquearam elas as profundidades, como consequência de seu racionalismo? A realidade agora não é nada mais do que o que pode ser conhecido pelo conhecimento natural – ou seja, no finai de contas, uma facticidade banal.
A pergunta é no sentido de se a filosofia não deve ser rejeitada como uma maneira ruinosa e desintegradora de pensar.
Na resposta, deve-se dizer que tais asserções gerais, acusadoras acerca das conexões causais são questionáveis. São sugestivas, mas não se sustentam sob um escrutínio. Já tivemos muito disto – de julgamentos pessimistas ou otimistas – acerca da história mundial e acerca do futuro. Sem dúvida, queremos saber das possibilidades e delinear o vasto desconhecido; mas, antes de mais nada, queremos aqui e agora fazer e ser o que pudermos, e o que agora é de realizar-se – e o que não dependa do conhecimento total histórico-mundial.
Neste terreno, a tarefa do filosofar é e continua sendo dar-nos uma abertura – para a amplitude da realidade abrangente, para a ousadia de comunicar em todos os sentidos da verdade numa luta amorosa, preservando sempre pacientemente a razão alerta mesmo na presença tanto do que seja mais estranho quanto do que retira-se em fracasso, e em última instância, encontrar o caminho de casa que está na realidade. É possível esta tarefa?
Há um dito antigo de que, na ciência, um conhecimento insatisfatório leva ao afastamento da fé, mas que um conhecimento perfeito e completo faz retornar a ela. Na verdade, conhecer alguma coisa cientificamente significa estar-se consciente dos limites do conhecimento e trazer à ciência um espírito filosófico. Sem este espírito, as proposições e as palavras que expressam os resultados científicos são superstições.
Podemos aplicar este dito acerca das ciências à filosofia: um pouco de filosofia faz afastar da realidade, mas uma filosofia completa faz a ela retornar. A filosofia superficial pode muito bem ocasionar as consequências que a visão acusadora da época presente lhe pespega. Pode desperdiçar-se em problemas infindáveis, em conhecimento histórico a respeito das doutrinas de escola, em ideias brilhantes, em deliberações plenas de impasse de caráter intelectual – e, ao assim proceder, perder de vista a realidade. A filosofia completa, todavia, é senhora destas possibilidades. É essencialmente a concentração por meio da qual o homem se toma ele mesmo ao compartilhar da realidade.
Embora a filosofia completa possa avivar o homem, até mesmo as crianças, sob a forma de pensamentos simples mas eficazes, sua elaboração consciente é uma tarefa que não termina nunca, que deve sempre ser repetida, mas que, não obstante, acha-se constantemente acabada como uma totalidade atual. A consciência dessa tarefa, apareça sob que forma aparecer, permanecerá sempre alerta enquanto o homem permanecer homem. Talvez apenas uns poucos a seguirão, de maneira constante. Mas é um nobre caminho: “Todas as coisas nobres são tanto mais difíceis quanto raras.”