Jaspers: § 2. A Questão da Essência do Homem (c)

c) Esquema filosófico do abrangente que nós somos

A questão concernente ao que é, propriamente, o homem sempre levou, dentro da psicopatologia, às totalidades. Entretanto, cada totalidade que se nos apresenta, no processo investigativo, se a medimos pelo abrangente do existir humano, é um fenômeno; assim se dá com relação à personalidade, quando falamos nela como caráter compreensível, típico. Os esquemas — todos eles — do existir humano que vemos de maneira objetiva e com que operamos cientificamente não são o abrangente, mas nele se contêm, por ele são envolvidos.

A tendência moderna da psicopatologia é afrouxar todas as unidades e totalidades. A questionabilidade da unidade nosológica foi o primeiro passo. As unidades das constituições e dos bios são igualmente questionáveis. Mas que é que podem substituir as ideias, antigamente válidas, da totalidade? É inútil falar em elementos novos, componentes, radicais, átomos, gens psíquicos, pois não se chega ao todo como construção destes elementos, sempre surgindo uma realidade ulterior no espaço do abrangente. Se esclarecermos esse espaço do abrangente, realizaremos uma interiorização daquilo que somos e podemos ser, mas não ficaremos sabendo o que é. Se falarmos nisso, poderemos ser tentados a tomar, por sua vez, aquilo que se disse como teoria dos componentes do existir humano. Vamos assinalar, brevemente [NA: Encontram-se algumas discussões a este respeito em minhas preleções: Vernunft und Existenz. Groningen, 1935. — Existenzphiiosophie. Berlim, 1938. — O desenvolvimento detalhado acha-se numa parte de minha Logik, ainda inédita.], para o fim de precaver-nos desta ilusão, quanto é inobjetivo apreender o abrangente que somos pela multiplicidade dos espaços em que nos encontramos.

Independentes de nós são reais o abrangente do mundo (segundo o conceituou Kant, o mundo não é objeto, mas ideia; o que conhecemos está no mundo, nunca é o mundo) e o abrangente da transcendência. Nesse abrangente, o homem atinge o existir, que é real mesmo sem ele, mesmo que não saiba desse existir; mas só é real conforme lhe aparece em geral, na cisão sujeito-objeto da consciência e conforme lhe fala. Tem outro sentido o abrangente entendido como o abrangente que somos nós próprios:

1. Somos existência, isto é, somos vida num mundo, como tudo quanto vive. O abrangente daquilo que vive torna-se objeto nos produtos da vida, nos quais, porém — quer seja forma corpórea, função fisiológica, conexão estrutural de base hereditária da vida inteira, quer seja ferramenta, ação, construção humanas — a vida mesma nunca se esgota; e sim subsiste o abrangente do qual tudo isso se origina. O existir preenche-se em sua manifestação pelo fato de nele se introduzirem, por ele serem portadas ou sujeitas a seu serviço as modalidades do abrangente que se seguem.

2. Somos consciência em geral, isto é, participamos na validez geral, que permite ao sujeito saber em formas, na cisão do existir em sujeito e objeto, toda a objetividade. Só o que aparece nessa consciência é que é existir para nós. Somos abrangente no qual tudo que existe pode ser mentado, sabido, conhecido, tocado, ouvido, dentro das formas objetivas.

3. Somos mente, isto é, a totalidade eventual, que as ideias-guiam, de conexões compreensíveis em nós mesmos e naquilo que produzimos, fazemos e pensamos.

Estas três modalidades do abrangente que somos engrenam-se entre si, mas sem coincidir, apenas roçando uma na outra. São as modalidades em que constituímos puras imanências; na objetificação e subjetificação deste abrangente aparecemos, adequada e empiricamente, como objeto da investigação biológica e psicológica; com o que, entretanto, não nos esgotamos, porque vivemos a partir de uma origem que ultrapassa a existência, à medida que esta se torna, empiricamente, objetiva; que ultrapassa a consciência em geral e a mente; e isso como existência possível e como razão propriamente. Essa origem de nosso ser, que escapa à investigação empírica de toda sorte e só se esclarece pelo auto-esclarecimento filosófico, manifesta-se: 1. na insuficiência que o homem experimenta em si, porque nele há permanente inadaptação à sua existência, ao seu saber, ao seu mundo mental; 2. na incondicionalidade a que ele se submete como se fosse seu próprio ser, ou como se fosse aquilo que a este ser é compreensível, é válido, é dito; 3. no impulso incessante para a unidade, porque o homem nunca está satisfeito com certa modalidade do abrangente por si, nem com todas elas juntas; aspira à unidade básica, à unidade que, só ela, é existir e eternidade; 4. na consciência de uma recordação inapreensível, como se houvesse existido desde o começo da criação, como “se partilhasse de uma ciência com a criação” (Schelling) ; ou ainda como se pudesse lembrar-se de alguma coisa vista antes de qualquer existir universal (Platão); na consciência da imortalidade, que não é sobrevivência em outra forma, mas ocultamente atemporal na eternidade, a qual se lhe apresenta com o aspecto de modo de prosseguimento contínuo no tempo.

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