Hume: fundamento da moral – razão ou sentimento?

Almeida Marques

3 Surgiu recentemente uma controvérsia bem mais digna de exame, referente aos fundamentos gerais da moral, a saber: se eles derivam da razão ou do sentimento; se chegamos a seu conhecimento por uma sequência de argumentos e induções ou por uma sensação imediata e um sentido interno mais refinado; se, como em todos os julgamentos corretos acerca da verdade e da falsidade, eles deveriam ser os mesmos para cada ser racional e inteligente; ou se, como na percepção da beleza e da deformidade, estão inteiramente fundados na estrutura e constituição particulares da espécie humana.

4 Os filósofos da Antiguidade, embora afirmem muitas vezes que a virtude nada mais é que a conformidade com a razão, parecem em geral considerar que a moral deriva sua existência do gosto e do sentimento. Porém, nossos modernos investigadores, embora também falem muito da beleza da virtude e da deformidade do vício, têm-se comumente esforçado para explicar essas distinções por meio de raciocínios metafísicos e deduções baseados nos mais abstratos princípios do entendimento. Reinou nesses assuntos uma tal confusão que um conflito da máxima importância pôde manifestar-se entre um e outro sistema, e mesmo em quase cada um dos sistemas individuais, sem que ninguém, até muito recentemente, disso se apercebesse. Os elegantes escritos de lorde Shaftesbury — autor que pela primeira vez fez notar essa distinção e que, de modo geral, aderiu aos princípios dos filósofos da Antiguidade — tampouco estão, eles próprios, inteiramente isentos dessa mesma confusão.

5 Deve-se reconhecer que ambos os lados da questão têm a seu favor atraentes argumentos. Pode-se dizer que distinções morais são discerníveis pela pura razão, caso contrário, de onde viriam as muitas disputas que reinam tanto na vida cotidiana como na filosofia quanto a esse assunto; as longas concatenações de provas que ambos os lados frequentemente oferecem, os exemplos citados, as autoridades às quais se faz apelo, as analogias empregadas, as falácias detectadas, as inferências extraídas e as diversas conclusões ajustadas aos respectivos princípios? Só se pode disputar sobre a verdade, não sobre o gosto; o que existe na natureza das coisas é a norma de nosso julgamento, mas a norma do sentimento é o que cada pessoa sente dentro de si mesma. As proposições da geometria podem ser provadas, os sistemas da física podem ser debatidos, mas a harmonia do verso, a ternura da paixão, o brilho da espirituosidade devem dar um prazer imediato. Ninguém raciocina sobre a beleza de uma outra pessoa, mas fá-lo frequentemente sobre a justiça ou injustiça de suas ações. Em todo julgamento criminal, o primeiro objetivo do prisioneiro é refutar os fatos alegados e negar as ações que lhe são imputadas, o segundo é provar que, mesmo que essas ações realmente tivessem sido feitas, seria possível justificá-las como inocentes e legais. Se admitirmos que o primeiro ponto é estabelecido por meio de deduções do entendimento, como se poderia supor que se empregue uma diferente faculdade mental para estabelecer o segundo?

6 Porém, os que querem analisar todas as decisões morais em termos do sentimento podem esforçar-se para mostrar que é impossível que a razão chegue a conclusões dessa natureza. O que é próprio da virtude, dizem eles, é ser estimável, e do vício, odioso. É isso que forma sua própria natureza, ou essência. Mas poderia a razão ou argumentação distribuir esses diversos epítetos a quaisquer objetos e decidir de antemão que isto deve produzir amor, e aquilo, ódio? E que outra razão poderíamos dar a essas afecções senão a estrutura e conformação originais da mente humana, que está naturalmente adaptada a recebê-las?

7 A finalidade de toda especulação moral é ensinar-nos nosso dever e, pelas adequadas representações da deformidade do vício e da beleza da virtude, engendrar os hábitos correspondentes e levar-nos a evitar o primeiro e abraçar a segunda. Mas seria possível esperar tal coisa de inferências e conclusões do entendimento que por si sós não têm controle dos afetos nem põem em ação os poderes ativos das pessoas? Elas revelam verdades, mas, quando as verdades que elas revelam são indiferentes e não engendram desejo ou aversão, elas não podem ter influência na conduta e no comportamento. O que é honroso, o que é imparcial, o que é decente, o que é nobre, o que é generoso, toma posse do coração e anima-nos a abraçá-lo e conservá-lo. O que é inteligível, o que é evidente, o que é provável, o que é verdadeiro, obtém somente a fria aquiescência do entendimento e, satisfazendo uma curiosidade especulativa, põe um termo a nossas indagações.

8 Extingam-se todos os cálidos sentimentos e propensões em favor da virtude, e toda repugnância ou aversão ao vício; tornem-se os homens totalmente indiferentes a essas distinções, e a moralidade não mais será um estudo prático nem terá nenhuma tendência a regular nossa vida e ações.

9 Esses argumentos de cada um dos lados (e muitos mais poderiam ser fornecidos) são tão plausíveis que tendo a suspeitar que ambos podem ser sólidos e satisfatórios, e que ração e sentimento colaboram em quase todas as decisões e conclusões morais. É provável que a sentença final que julga caracteres e ações como amáveis ou odiosos, louváveis ou repreensíveis; aquilo que lhes impõe a marca da honra ou da infâmia, da aprovação ou da censura, aquilo que torna a moralidade um princípio ativo e faz da virtude nossa felicidade e do vício nossa miséria — é provável, eu dizia, que essa sentença final se apoie em algum sentido interno ou sensação que a natureza tornou universal na espécie inteira. Pois que outra coisa poderia ter uma influência desse tipo? Mas vemos que, para preparar o caminho para um tal sentimento e prover um discernimento apropriado de seu objeto, é frequentemente necessário precedê-lo de muitos raciocínios, traçar distinções sutis, extrair conclusões corretas, efetuar comparações distantes, examinar relações complexas, e estabelecer e verificar fatos gerais. Alguns tipos de beleza, especialmente a das espécies naturais, impõem-se a nosso afeto e aprovação desde a primeira vista, e se não produzem esse efeito é impossível que qualquer raciocínio consiga corrigir essa influência ou adaptá-las melhor ao nosso gosto e sentimento. Mas em muitas espécies de beleza, particularmente no caso das belas-artes, é preciso empregar muito raciocínio para experimentar o sentimento adequado, e um falso deleite pode muitas vezes ser corrigido por argumentos e reflexão. Há boas razões para se concluir que a beleza moral tem muitos traços em comum com esta última espécie, e exige a assistência de nossas faculdades intelectuais para adquirir uma influência apropriada sobre a mente humana.

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