Inevidências do eu

(Gil1998)

Segundo o velho e sempre bom preceito de Hughlings Jackson, apreendem-se melhor as estruturas estudando a destruturação. Por isso nos dirigimos a Sá de Miranda, que nos fornecerá uma prova pela negativa: a sua experiência é a de uma inevidência do eu em todos os aspectos referidos 1. Ela assenta numa des-regulação fundamental da relação ao tempo. Dissemos que o eu é uma forma activa transportando-se entre o passado e o futuro — mas teríamos podido deduzir da própria acção a outra série do tempo: o fazer produz a temporalidade do antes e do depois pois a acção decompõe-se numa sequência de momentos (também aqui seríamos fiéis a Fichte). Uma breve esparsa de Sá de Miranda indica a união íntima — a relação que o poeta perdeu — entre identidade:

Não vejo o rosto a ninguém;
cuidais que são e não são

e a inscrição do agir no tempo. O agir é aparência, a sua projecção num futuro, também. Sá de Miranda continua:

homens, que não vão nem vêm,
parece que avante vão;

Resulta daí confusão e doença — a doença do eu.

antre o doente o são
mente cad’hora a espia;

(A espia é a haste do relógio solar.) E os últimos dois versos apresentam a temporalidade como uma confusão entre o antes e o depois. Vemos ao meio-dia as constelações do crepúsculo,

na meta do meo-dia
andais entre Lobo e Cão

Trata-se de coisa mais profunda que o topos do tempus fugit. Outros poemas de Sá de Miranda exploram as implicações da incerteza quanto ao presente e ao futuro, e também ao passado. Têm por efeito a perda de confiança.

Ó cousas, todas vãs, todas mudaves,
qual é tal coração qu’em vós confia?

Sá de Miranda já não confia nem crê, di-lo noutro lugar. Mas ao deixar as esperanças que erradamente alimentou, logo se pergunta:

Que vida há-de ser a minha,
por tempos, nem por mudanças,
que possam vir? Que não tinha
mais bem que estas esperanças.
Agora, às desconfianças
e suspeitas que farei?

A confiança é o único bem que possuímos, uma vez que significa a esperança da realização do desejo, num futuro. O poeta desenganado — suspeitoso, desconfiado — perdeu esse bem que é tudo. O tempo que a confiança desertou será tempo desocupado, vacante, exterior à existência do eu,

tempo lançado a longe e não vivido

Não viver o tempo é ausentar-se de si, esquecer a sua identidade, ir-se assim de dia em dia. Ou, ainda, não saber quando é de noite ou quando é dia, até à loucura, em que a consciência de si se apaga definitivamente — e a loucura comparece ameaçadoramente em diferentes poemas. As dúvidas sobre a identidade desdobram-se numa dúvida sobre a primeira pessoa.

Que é isto? Onde me lançou
esta tempestade má?
Q’é de mi, se não sou lá
e cá comigo não vou?

A despossessão de si é o sentido — o sem sentido — da experiência interior de Sá de Miranda. Ela contamina toda a subjectividade:

Ando em busca de mim, não sei por onde,
enquanto esta alma tresvalia e sonha
……………………………..
Sigo umas sombras que nunca aferro

O sentimento de despossessão abrange a vontade. Sá de Miranda é arrastado por uma vontade inexorável, que não é sua (tão inimiga minha):

aquela cega vontade
que tão cegamente guia
…………………..
entretanto esta vontade,
assi cega, guia, guia

A própria consciência do agir se esbate. Vários poemas descrevem uma existência sonambúlica, intervalar, crepuscular,

voyme así devaneando
entrela muerte y la vida

Um cansaço irremediável é a sua expressão, Sá de Miranda está cansado nos próprios descansos. A resultante final não pode senão ser desafecção por si, de que se não pode libertar.

Comigo me desavim,
sou posto em todo perigo;
não posso viver comigo
nem posso fugir de mim
…………………….
pois que trago a mim comigo
tamanho imigo de mim

Esta hostilidade desemboca na tentação do suicídio que transparece na poesia de Sá de Miranda, e inquina também a relação com o outro. Pois,

quién osará ser amigo
del enemigo de si?

  1. Para uma versão desenvolvida do que se segue, cf. o meu estudo «As inevidências do eu», em F. Gil e Hélder Macedo, Viagens do Olhar, Porto, Campo das Letras, 1998.[]