Fichte, um relato sobre o eu

(MVKS)

Fichte dizia aos seus alunos em Jena que queria redigir “um relato sobre o Eu”, sobre o Eu que é a alma de toda sua filosofia, o Eu de onde tudo parte. Ele celebra o princípio sublime do Eu ou da ipseidade (Ichheit), do Eu que é sinônimo de “forma, liberdade, saber, interioridade, luz”. O idealismo é a filosofia do Eu e ensina que, para conhecer, não se deve sair do Eucírculo fechado onde nada de externo pode penetrar. Tudo o que é, ou seja, tudo o que é conhecido, encontra-se no Eu, portanto todo o cognoscível é a priori. Já os Princípios de 1794 falam de uma filosofia “imanente”, tese repetida com pathos sete anos depois. O Eu, que é a visão por excelência, é como um olho e “é nesse olho claro… e fechado em si mesmo onde nada estranho pode entrar nem sair para algo externo que repousa nosso sistema”. Fichte insiste até o excesso no idealismo, na existência exclusivamente subjetiva de todas as coisas, um discurso que leitores e ouvintes limitados tomam por um solipsismo grosseiro. O Eu desenvolve tudo dentro de si mesmo e nada entra nele, nada lhe advém de fora. A inteligência não é um elo no sistema das coisas exteriores, mas é a origem desse sistema inteiro. As coisas são transparentes diante dos olhos de nosso espírito porque são tecidas de sua matéria: o saber não nasce das coisas, não filtra de fora, ele emana de nós mesmos porque somos nós que constituímos seu ser verdadeiro.

Através de quase duas décadas de incessante reescrita, a Wissenschaftslehre reitera fielmente sua profissão de idealista. Uma vez que o espírito tiver unido todos seus conteúdos em uma unidade, compreenderá que produziu ele mesmo esse todo. Só há ser para uma consciência e apenas na medida em que ela é consciente dele. Todo suposto exterior não passa de um “exterior interno”, os objetos externos são apenas “a interpretação de nosso sentimento”, as coisas não são senão “uma forma do saber, fundada nesse mesmo saber”. Em suma, o Eu, ou seja, “o olho é o princípio do mundo”.

Evidentemente, o Eu em questão não é o Eu psicológico individual de um homem, sujeito à conjectura, ao erro, às inúmeras limitações do empírico, mas um Eu puro, a priori, uma ipseidade que não é simples metáfora especulativa nem novo postulado da razão pura, mas uma noção transcendental sui generis, sucessora em linha direta do sujeito a priori da Crítica. Desde o início até o fim de sua carreira filosófica, Fichte identifica o Eu com a consciência de si transcendental. Hegel explicará com muita perspicácia que o Eu da Wissenschaftslehre é o juízo sintético a priori da Crítica. Fichte é pródigo em sinônimos: subjetividade, ipseidade, inteligência, razão, ou ainda define o Eu como “a inteligência kat’exochèn cujo querer, pensar e intuição são apenas subespécies”, mas ao mesmo tempo professa a identidade de sua noção primeira com a apercepção kantiana. A consciência de si/transcendental/é a ipseidade, escreve o Relatório Claro como o Dia, “a ipseidade ou a apercepção” será a linguagem da Doutrina da Ciência de 1813, obra fragmentária. A apercepção transcendental é na Crítica um correlato da consciência do mundo e ao mesmo tempo o lugar e a matriz das categorias. A Wissenschaftslehre acolhe com entusiasmo a noção e repensa a resposta de maneira criativa: as leis do pensamento, as categorias não são senão aplicações da apercepção. Na Crítica, a vocação noética, conceituante da subjetividade está inscrita em seu ser transcendental; em Fichte também o conhecimento decorre da consciência, mas a Wissenschaftslehre radicaliza e sistematiza a noção.

O vocábulo “Eu”, e sobretudo o de “ipseidade”, expressam claramente as ambições metafísicas do fichteanismo. O que na Crítica era apenas função pura, formal, estrutura abstrata a meio caminho entre conceito e ser, torna-se um princípio em vias de hipostasiação. Kant, prudente, insiste incessantemente nos limites da apercepção transcendental, sobrecarregada por um condicionamento irredutível pelo diverso sensível. Fichte, por sua vez, desde os Princípios, utiliza com facilidade e confiança noções como ipseidade, apercepção, o Eu como ideia, ou mesmo o Eu absoluto e, mais tarde, arriscará até a expressãoapercepção absoluta”. O Eu é o racional por excelência, ou melhor, a própria razão. Ele é uma afirmação absoluta, uma uniformidade sem falha, uma unidade e identidade absolutas. E se no kantismo o sujeito transcendental teve que ser constantemente demarcado do pano de fundo dos substratos numênico ou empírico, da coisa em si ou do diverso, o Eu da Doutrina da Ciência não é sequer um agente, mas apenas um puro agir. A insistência no agir não tem aqui um sentido moralizante, mas propriamente metafísico. O idealismo não poderia reduzir o conhecer à soma dos resultados petrificados da reflexão, em conceitos estáticos, e menos ainda encontrar na raiz do sujeito cognoscente um substrato morto e opaco. O idealismo não admitiria que o Eu se guiasse pelas sombras que as coisas exteriores, entidades ontológicas, projetam diante dele. Se há sombra, ela deve ser situada no interior do Eu e um eventual substrato da subjetividade é antes uma negatividade interior em mim do que um peso material que o sujeito arrasta atrás de si ao caminhar.

Fichte é o filósofo do Eu — ele mesmo não é chamado por Goethe de “o grande Eu”, o “Eu absoluto”? — e a explicação do Eu, a decifração desse filosofema, certamente dá a chave desse pensamento tão difícil. As interpretações variam desde uma leitura do Eu como simples cifra da consciência empírica até sua identificação com a Divindade. Nenhuma dessas interpretações é inteiramente inexata, mas o essencial é compreender que, apesar de toda aparente hipostasiação, o Eu não é uma entidade, ainda que suprema, mas um sistema dinâmico de funções, e sobretudo que, em vez de uma leitura cosificante, ontológica, dever-se-ia privilegiar outra, inspirada e determinada pela noção do para-si. O Eu não é um ser em relação com outros seres, nem mesmo um ser que entrou em relação consigo mesmo, mas uma realidade originariamente relacional. Se a apercepção da Crítica é originariamente sintética, o Eu da Wissenschaftslehre é originariamente para-si. E esse caráter originariamente para-si do Eu deve ser compreendido a partir dos três princípios da Doutrina da Ciência.