(…) podemos nos voltar para o terceiro princípio da doutrina-da-ciência. É preciso tempo para apreciá-lo, antes de que possa explicá-lo de maneira mais compreensível para nós, nativos do século XXI: “Eu oponho no Eu o Eu partilhável ao não-Eu partilhável”1. Esta enuncia: Conhecimento é convicção justificada e verdadeira. Por trás disso se esconde a seguinte ideia, que Platão formulou pela primeira vez em seu diálogo Teeteto, o texto fundador da teoria do conhecimento: pergunte-se se alguém pode ter conhecimento de algo que é falso. Posso ter conhecimento de que a Angela Merkel tem dezessete dedos indicadores? Ora, como eu poderia ter conhecimento disso, se ela tem (até agora) apenas dois! Isso é chamado da condição de verdade. Ela diz que só se pode ter conhecimento de algo que é verdadeiro. Aquilo de que se tem conhecimento é algo que é verdadeiro.
Próxima pergunta: Você pode ter conhecimento de algo de que não está de modo algum convencido? Suponha que eu te dissesse que sei que 2 + 2 = 4. Agora, você perguntaria: Você realmente acredita nisso? E eu o informaria que não estou de modo algum convencido disso. Isso seria estranho. Se se pensa saber algo, se está também convencido disso. Por isso, há uma discussão de milhares de anos sobre a relação entre conhecimento, certeza e crença. Não se pode ter conhecimento de nada que não se considere com um alto grau de certeza como verdadeiro. Se eu sei algo, eu faria uma aposta a esse respeito.
Talvez agora você queira apontar para o fato de que nós praticamente nunca temos certeza absoluta. Afinal, enganamo-nos também às vezes, por mais que pensássemos ter conhecimento de algo. Igualmente, pode-se também convencer pessoas de que elas têm conhecimento de algo de que, na verdade, não têm conhecimento de modo algum – por isso que há ideologia.
Esse ponto cobre a terceira condição para o conhecimento, a condição de justificativa. Ela diz que ninguém pode ter conhecimento de nada que não se possa defender com boas razões assim que se começa a ter dúvidas. Se eu dissesse que sei onde Angela Merkel está no momento, e você colocasse isso em questão, eu poderia apontar que acabei de vê-la em uma entrevista em Berlim ou que um conhecido meu acabou de me ligar porque ele viu a chanceler com guarda-costas, fazendo compras. Ter conhecimento de algo pressupõe que se pode indicar razões para que se o considere verdadeiro. Significa então, ao menos: considerar verdadeiro algo que é verdadeiro por boas razões e com uma convicção consideravelmente firme.
É importante agora o fato de que é muito fácil compartilhar um conhecimento com alguém. Se a minha mulher me liga e me diz que o nosso cachorro ainda está dormindo na sala, ela pode olhar e confirmar isso. Minha mulher sabe, então, por meio do simples olhar (que é a boa razão para o seu conhecimento) que o cachorro dorme na sala. Se ela compartilha isso comigo, compartilhamos o conhecimento. O conhecimento é partilhável [teilbar] e, de fato, por meio do compartilhamento [Mitteilung], como a palavra já mostra. Isso é o que Fichte chama do não-Eu divisível [teilbare Nicht-Ich].
O que, porém, eu não posso compartilhar com a minha mulher, é a sua representação dessa cena. Se ela vai na sala e vê nosso cachorro lá, ela o vê de uma determinada perspectiva e tem determinados sentimentos em relação ao cachorro, percebe determinados objetos nos quais eu talvez não prestaria atenção, pois ela tem outras suposições de pano de fundo e experiência, das quais muitas são inconscientes. Nossas representações estão inseridas em um pano de fundo, como Searle o chama, ou seja, em um repertório de capacidades e suposições que ocorrem de maneira predominantemente não consciente.
Aludimos exatamente a isso quando falamos de que não podemos nos representar como é ser alguma outra pessoa. Por uma representação pode-se entender o episódio psicológico que ocorre quando se processa impressões sensíveis ou se traz à memória impressões processadas sensivelmente por meio da imaginação. O conceito de representação traz novamente dificuldades, que se pode contornar quando se entende por ele aquelas informações que são acessíveis a um indivíduo por razão de sua situação específica como um todo, do que faz parte, justamente, que o indivíduo se encontre em determinado lugar e em determinado tempo. Não sei o que a minha mulher representa, e inversamente ela não sabe o que eu represento. Mesmo quando se conhece bem uma pessoa, não se pode, nesse sentido, entrar em seu mundo de representações e vivenciá-lo de uma perspectiva interior – como, por exemplo, em Being John Malkovich [Quero ser John Malkovich].
Pode-se, por isso, compartilhar representações, mas não as partilhar. O conhecimento, em contrapartida, pode-se compartilhar e, assim, também partilhá-lo. Isso se segue simplesmente do conceito de conhecimento, que eu gostaria de colocar aqui mais uma vez de maneira resumida: eu posso conhecer o mesmo que outra pessoa sabe na medida em que ambos de nós reconhecemos o mesmo fato como verdade e temos as mesmas boas razões para tanto. Encontramos-nos, então, no mesmo estado de conhecimento. Eu não posso, porém, ter a mesma representação de outra pessoa, uma vez que, para tanto, eu precisaria ser a outra pessoa.
A filosofia do Eu de Fichte trata do conhecimento; trata-se, de fato, afinal, da doutrina-da-ciência. Desse modo, já em seu tempo ele protestou contra a suposição de que só poderíamos conhecer algo porque temos representações que surgem em nós pelo fato de que os terminais nervosos de nossos receptores sensoriais são estimulados. Ideias semelhantes circulavam em seu tempo e eram empregadas para colocar o nosso conhecimento como um todo em questão. Desse modo, porém, se confunde, justamente, conhecimento e representação.
O terceiro princípio de Fichte diz então, de maneira bastante simples, que alguém que conhece algo é colocado, assim, em um estado partilhável. O conhecimento é algo universal, que se deixa compartilhar e partilhar. “O Eu” é o nome de Fichte para dimensão universal do saber. Ele é o sujeito universal do conhecimento. “O Eu partilhável”, em contrapartida, é o nome de Fichte para o fato de que pode haver muitos que conhecem algo. “O não-Eu partilhável” é aquilo tudo que se pode conhecer no modo da absoluta objetividade.
Isso tudo pode soar muito correto agora. Seria possível usar Fichte para legitimar a cultura contemporânea do conhecimento, uma vez que ela gira em torno do Eu, que ela confunde atualmente com o cérebro – e, desse modo, com um não-Eu partilhável. Assim, se estaria, então, ainda na posição do início do século XIX, para trás da qual o neurocentrismo regride. Mas não é como se a filosofia tivesse parado nessa época, mas sim, em certo sentido, foi então que ela tomou o rumo certo.
(MGCérebro)
- FICHTE, J.G. Grundlage der gesamten Wissenschaftslehre (1802). In: FICHTE, 1971: 110.]. Há, nesse princípio, três protagonistas:
1) o Eu;
2) o Eu partilhável;
3) o não-Eu partilhável.
Soa estranho, mas é facilmente reconstruível. “O Eu” é, diferentemente do Eu divisível, a circunstância que você tem em comum comigo: a circunstância de que podemos saber algo. Aqui, é importante pôr diante dos olhos uma relevante distinção entre saber e representação, que hoje se apaga de muito bom grado.
De Platão até a teoria do conhecimento atual – que se ocupa intensamente, entre outras coisas, com a pergunta sobre o que o conhecimento em geral é – se fala da definição padrão de conhecimento [[Embora, no original alemão, Standarddefinition des Wissens, a tradução mais literal fosse “definição padrão de saber”, optamos por traduzir como “definição padrão de conhecimento”, já que esse é o termo consagrado nas discussões em português acerca da definição tripartite de conhecimento platônica que está sendo discutida aqui. Cf., p. ex., a introdução de Plínio Smith da tradução do livro de Robert Fogelin, Reflexões pirrônicas sobre o conhecimento e a justificação (Tradução de Israel Vilas Boas. Salvador: EDUFBA, 2017) [N.T.].[↩]