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Questionar a razão classificatória

Wunenburger1990

Portanto, pode-se formular o projeto de questionar a autoridade da racionalidade clássica, de lançar dúvida sobre sua onisciência, de contestar sua representação da diferença. Mas essa crítica ao poder da razão não coloca mais em jogo apenas sua competência de direito, os limites jurídicos de sua extensão, como no kantismo; ela incide verdadeiramente sobre as raízes e as figuras da discursividade estabelecidas sob o reinado da identidade triunfante. Na verdade, a razão foi destronada de sua soberania monárquica há mais de um século, devido à proliferação de ciências que estendem a investigação do real para estratos cada vez mais surpreendentes, e também pelo impulso de filosofias da suspeita que revelam, sob a superfície de representações claras e distintas, profundidades inquietantes. Todo tipo de disciplinas e escolas de pensamento familiarizaram a modernidade com a vaidade de certas construções conceituais, com o excesso, irreductível à primeira vista, das coisas sobre sua representação. De todos os lados surgem apelos ou programas para melhor delimitar a diferença, para pensar de maneira contrastante e mais dinâmica a complexidade. A diferença não se deixa mais esgotar pela fineza dos inventários, a complexidade não tolera mais ser reduzida à mera complicação. A retificação da inteligência do mundo passa por uma multiplicação de leituras, uma plasticidade das figuras da representação, para fazer emergir a animação polimorfa das diferenças.

Essa orientação deve ser ainda mais reforçada e perseguida porque a cultura moderna acentua, contra todas as previsões, seus impulsos simplificadores, suas pulsões identitárias. O desenvolvimento exponencial e a difusão generalizada do conhecimento humano inevitavelmente levam à sua codificação, ao seu resumo, de modo que a prosa do mundo se reduz como uma pele de cordeiro. As cadeias articuladas das representações são reduzidas a mensagens cifradas, a unidades atomizadas, a slogans pré-fabricados. As tecnologias da informação favorecem cada vez mais a digitalização dos signos e sua transcrição binária, em detrimento das potencialidades insubstituíveis do pensamento analógico ou intuitivo. A modernidade conduz imperceptivelmente a uma espécie de hipertrofia temível e tirânica do “cérebro esquerdo”, dedicado à apreensão analítica, fragmentada, sequencial e fria do dado. Simultaneamente, a renovação considerável do sentido da profundidade, trazida pelas ciências da natureza e do homem, é frequentemente confiscada ou anulada pelos surtos identitários de ideologias esqueléticas.

Repensar, portanto, o problema da diferença e da complexidade, sob uma perspectiva não identitária, não pode ser assimilado a um exercício escolar, a uma especulação de filósofo que cultiva seu jardim secreto, mas assume uma dimensão cultural e até, no sentido forte, política. Decidir sobre os caminhos que permitiriam retomar um entrelaçamento inextricável entre identidade e alteridade, unidade e pluralidade, repetição e mudança, deveria permitir recuperar um giroscópio intelectual, capaz de orientar o homem no meio de uma crise profunda de seus referenciais. Certamente, os quadros e os corpus do racionalismo clássico foram suficientes por muito tempo para regular as relações do homem com as coisas e dos homens entre si. O homem contemporâneo, porém, dividido entre um iconoclasmo muitas vezes intempestivo e uma credulidade alimentada pelos incontáveis “prêt-à-penser” da modernidade, tem uma necessidade urgente de uma bússola para se abrir caminho em uma estrada obstruída pelos escombros da razão fragmentada e pelas armadilhas sedutoras de filosofias apressadas. Ao buscar, portanto, delimitar alguns trajetos para uma melhor inteligibilidade da complexidade, não queremos adotar uma posição acadêmica, nem reivindicar uma competência especial junto aos lógicos ou epistemólogos, mas recuperar um ponto fixo, um horizonte estável, que tornariam possível uma melhor adaptação do homem à ordem verdadeira das coisas, em suma, uma autêntica “ecologia do espírito”.

Essa empreitada se revela, aliás, tanto mais fácil quanto essa racionalidade alternativa, mais flexível, menos dogmática, já tem uma longa história atrás de si. Muito antes do advento das ciências matemático-experimentais no século XVII, ela permitiu alimentar inúmeras interpretações da ordem do mundo, como as dos pré-socráticos, dos pensadores hermetistas da Renascença, por exemplo, que, à sua maneira, respondiam às necessidades de compreensão do homem diante do desconhecido. Desde o século XVIII, igualmente, sempre houve espaço, mezza voce, para um logos da Natureza, incluindo o próprio Homem, que, sem renunciar à discursividade e à sistematicidade, buscava antes de tudo seus instrumentos no recorte polimórfico da realidade, em relações de contrariedade efetiva, em configurações polares, em uma lógica não identitária. Em contraste com o racionalismo das leis uniformes, das taxonomias rígidas, das ligações unilaterais e lineares, esses saberes pretendem ir além da superfície visível das coisas, do isomorfismo dos eventos, da autonomia dos elementos, dos enunciados lógicos não contraditórios. Em vez de varrer o visível com uma luz artificial que nivela as asperezas e as mudanças tênues, essa razão do claro-escuro pretende penetrar mais profundamente no real, para decifrar seus nós, suas dobras, suas oscilações, seus equilíbrios. Mas, com isso, ela assume conscientemente o risco de renunciar à análise objetivante, fria, à abstração que isola as partes umas das outras, e a superfície das profundezas, para ir ao encontro das coisas com a totalidade das formas cognitivas de que dispõe o espírito conhecedor; assim, se configuram saberes mais próximos das configurações concretas, das variações qualitativas, na medida em que também estão menos dissociados do sujeito cognoscente, portanto mais engajados com formas cognitivas simbólicas, que fazem sentido desde o início.

Como destacou bem G. Gusdorf, «o fisicalismo do nosso tempo limita suas investigações a uma verdade de superfície, espalhada como manteiga no pão; trata-se de conectar entre si as aparências, à maneira de Hume, destacando os princípios da associação entre ideias. Fenômenos sem númeno, aparências regulares sem que se saiba o que se mostra, ou antes se oculta, sob essas aparências». Em contraste, a especulação dos Naturphilosophen, por exemplo, «não pretende assumir o significado de um conhecimento objetivo e extrínseco reduzido à superfície dos fenômenos; ela se esforça para revelar a coerência intrínseca, a arquitetura inteligível do real; trata-se de penetrar na intimidade da essência das coisas e dos seres. Tal conhecimento implica o sujeito ao mesmo tempo que o objeto; a intenção é assegurar a integração do indivíduo ao mundo e do mundo ao indivíduo».

Deve-se então resignar-se a essa cisão epistemológica e filosófica, a esse conflito de duas inteligências, ou mesmo apoiar o desprezo altivo com que a ciência dominante frequentemente trata esse saber da complexidade globalizante do real? Não seria, ao contrário, necessário reavaliar essa racionalidade das sombras, para evidenciar a riqueza de suas intuições e as promessas heurísticas de sua lógica? Não seria este o momento, especialmente porque as ciências canônicas são, mais do que nunca, chamadas, apesar de seu triunfo social, a uma humildade epistemológica, dada a crescente desproporção entre a racionalidade clássica e as novas configurações descobertas no real? Não seria oportuno, portanto, questionar novamente essa antiga razão da profundidade, depurá-la das firulas anedóticas que ajudaram no seu descrédito, purificá-la de suas sobredeterminações por vezes extravagantes que permitiram caricaturá-la sem restrições, para reintegrá-la no campo da aventura do espírito em busca da inteligibilidade do que é?

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