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Wolff (1997) – Quem age?

WOLFF, Francis. Dire le monde. Paris: PUF, 1997

A questão «quem?»

  • A interrogação pelo «quem?» não se distingue meramente da pergunta «o que é?» pela natureza da resposta esperada, mas constitui uma modalidade de inquirição que visa identificar no mundo um ser dotado das mesmas determinações de realidade, determinidade, identidade e ipseidade atribuídas às coisas, porém elevadas a um grau de excelência que o nome comum falha em capturar. Enquanto a pergunta pela essência das coisas se satisfaz frequentemente com universais ou classificações que diluem a singularidade do objeto, a pergunta pelo «quem?» exige a designação de um indivíduo absoluto, uma ipseidade irredutível que parece encontrar no nome próprio a sua realização ideal, sugerindo a existência de um sub-linguagem-mundo onde a cada ser corresponderia uma designação exclusiva e onde o conhecimento do nome equivaleria ao domínio da essência singular.
  • Contudo, a especificidade do «quem?» não se esgota na busca pela singularidade do nome próprio, uma vez que outras questões como «onde?» e «quando?» também visam determinações singulares através de topônimos ou datas; a diferença radical reside no fato de que a resposta ao «quem?» não designa apenas um elemento passível de ser falado, um objeto de discurso isolado no mundo, mas aponta para um ente capaz de ocupar a posição de sujeito da enunciação, um agente que pode falar do mundo ou a quem se pode falar. A vontade de saber quem é alguém transcende a mera identificação de uma peça no jogo do mundo para buscar o foco de uma possível interlocução, revelando que a resposta plena não se encontra na terceira pessoa, mas na reversibilidade entre o eu, o tu e o ele.

Sujeitos pessoais e predicados de ação

  • A constituição das pessoas como entidades distintas das coisas opera-se fundamentalmente através da atribuição de uma classe específica de predicados, os predicados de ação, que não descrevem meros eventos que ocorrem a um sujeito, mas atos causados por ele; um ato define-se, nesta perspectiva, como um evento cuja causalidade é imputada a uma pessoa, independentemente das complexidades psicológicas ou morais como a intenção, a deliberação ou o livre-arbítrio, que funcionam apenas como modificadores adverbiais de uma relação causal já estabelecida. A distinção entre o evento natural, como o cair de uma pedra, e a ação humana, como o caminhar de um homem, não reside na materialidade do fenômeno, mas na estrutura lógica da imputação que vincula o acontecimento a um «quem» responsável.
  • O enunciado de imputação, que liga um nome próprio de pessoa a um verbo de ação, apresenta-se como a forma perfeita da estrutura predicativa, onde o sujeito pessoal realiza o ideal de ipseidade da coisa (sendo único e determinado) e o predicado de ação realiza o ideal de transitividade do evento (sendo temporal e novo); essa síntese aparenta criar um ilhéu de perfeição no linguagem-mundo, onde a identidade estável da substância e a fluidez temporal do devir parecem reconciliadas na figura de um sujeito que permanece o mesmo enquanto produz o novo.

A necessidade da imputação

  • A necessidade de postular a existência de pessoas e atos não deriva de uma constatação empírica neutra, mas impõe-se como a condição de possibilidade de todo discurso prático e, especificamente, da dimensão ética, a qual ruiria se o mundo fosse compreendido apenas como um encadeamento de coisas e eventos naturais regidos pela necessidade ou pelo acaso. Para que o juízo ético, a atribuição de mérito ou culpa, e a própria distinção entre bem e mal tenham sentido, é imperativo que o enunciado «alguém age» seja inteligível, o que tradicionalmente se traduz na exigência de que um evento possa ser isolado da cadeia causal infinita e referido a uma origem pontual num sujeito identificado.
  • O discurso ético e jurídico pressupõe, portanto, a validade da imputação, operando uma inferência que vai da necessidade de sentido moral à postulação ontológica de agentes responsáveis; se não houver alguém a quem atribuir a autoria do que acontece, o mundo torna-se um espetáculo moralmente indiferente, onde tudo o que ocorre é apenas o desdobramento inevitável de estados anteriores, anulando a possibilidade de intervenção, julgamento ou valoração.

A pessoa e o ato, conceitos intersectivos

  • A análise crítica revela que os conceitos de «pessoa» e «ato» são construções híbridas e intersectivas, dilaceradas entre as lógicas incompatíveis dos dois mundos ideais que a metafísica projeta: o mundo da identidade absoluta (das coisas) e o mundo da causalidade infinita (dos eventos). A pessoa, para ser sujeito de imputação, deve possuir a estabilidade da coisa, permanecendo idêntica a si mesma através do tempo (como o César de Leibniz, cuja essência contém seus predicados), mas simultaneamente deve ser capaz de iniciar cadeias causais novas sem ser determinada pela sua natureza prévia (como o Don Juan de Kierkegaard, que é pura eventualidade); ela é, portanto, uma contradição teórica, um ser que deve ser substância para responder pelo passado e liberdade para agir no presente.
  • Reciprocamente, o ato é tensionado entre a necessidade de ser um evento mundano, inserido na trama temporal e explicável por causas antecedentes, e a necessidade de ser uma predicação do sujeito, emanando dele como sua obra própria; se o ato é puramente evento, perde-se na transitividade do «por que» e a imputação se dissolve; se é puramente predicado, dissolve-se na analiticidade do «o que é» e torna-se uma propriedade inerte. O ato imputado é, assim, um monstro lógico que tenta ser, ao mesmo tempo, uma ocorrência nova no mundo e uma propriedade essencial de um sujeito.

A impossibilidade da imputação

  • A tentativa de fundar a responsabilidade prática sobre a estrutura predicativa da linguagem conduz a uma antinomia insolúvel, um quiasma onde as exigências da identidade pessoal e da novidade da ação se anulam mutuamente em vez de se sustentarem. Quanto mais se «coisifica» a pessoa para garantir a identidade do culpado ao longo do tempo, mais seus atos aparecem como emanações necessárias de sua natureza ou caráter, tornando-se eventos naturais previsíveis e inimputáveis sob o prisma da liberdade; inversamente, quanto mais se «eventualiza» o ato para garantir sua contingência e liberdade, mais ele se destaca da substância do agente, aparecendo como um acidente fortuito ou um surgimento arbitrário que não mantém relação orgânica com quem o sujeito é.
  • O discurso penal e moral debate-se nesta aporia, oscilando entre julgar o criminoso pela sua natureza (o que ele é, tornando o crime um sintoma) ou pelo seu ato (o que ele fez, isolando o feito do autor), sem jamais conseguir, através da lógica predicativa, estabelecer um vínculo que não seja nem analítico (necessário) nem sintético (acidental). A imputação revela-se, sob a análise rigorosa, uma operação inconsistente que tenta aplicar a cópula da predicação teórica («S é P») a uma relação prática («X fez A») que não suporta nem a exterioridade dos termos nem a sua identidade essencial.

Os conceitos híbridos do discurso prático: vontade, identidade pessoal, liberdade

  • Diante da inconsistência lógica da imputação, a metafísica engendrou conceitos de sutura destinados a preencher o hiato entre a pessoa e o ato, simulando uma continuidade onde há ruptura. O conceito de Vontade, tal como elaborado por Santo Agostinho, surge para interromper a regressão infinita das causas, postulando uma faculdade que seria a «causa não causada» dos atos dentro do sujeito, permitindo atribuir a origem do mal ao homem e não a Deus; a vontade opera como um fundamento prático, dotado de uma reflexividade que mimetiza a causa de si, permitindo dizer que o homem age «porque quis», transformando a tautologia em explicação.
  • De modo análogo, o conceito de Identidade Pessoal, formulado por Locke, transfere a estrutura da substância para o sujeito moral, utilizando a continuidade da consciência como critério para garantir que o agente presente seja o mesmo que o agente passado, viabilizando a retribuição forense; a Liberdade, por sua vez, é o conceito encarregado de mascarar a contradição entre a determinação do caráter e a indeterminação da escolha, oscilando perpetuamente entre a liberdade de indiferença (ato sem causa) e a liberdade de espontaneidade (ato conforme a natureza). Todos esses conceitos são artefatos teóricos desenhados para salvar a aparência de consistência do discurso prático predicativo.

A terceira pessoa e a primeira pessoa

  • O fracasso dos conceitos metafísicos em fundamentar a ação decorre do fato de serem modelados sobre a terceira pessoa gramatical, tratando o agente como um «ele», um objeto de discurso sobre o qual se fala e ao qual se atribuem propriedades ou feitos retrospectivamente. O conceito de pessoa é, em sua gênese, um conceito judiciário que pressupõe o ato como um fato consumado (passado) e o agente como um réu a ser identificado (terceira pessoa), impondo uma estática que é incompatível com a dinâmica da ação em curso.
  • A verdadeira compreensão da agência exige o abandono do esquema predicativo e judiciário em favor de uma abordagem baseada na primeira pessoa, no «eu» que fala e age no presente; o agente real não é uma substância que subsiste sob as mudanças, mas aquele que se enuncia como «eu», instaurando uma relação com o mundo que não é de conhecimento ou atribuição, mas de atuação e posição.

O eu como indicador

  • O «eu» distingue-se radicalmente do conceito de pessoa por não ser um nome, que designa uma entidade fixa, nem um verbo, que descreve um processo, mas um indicador ou dêitico cuja referência é essencialmente ocasional e reflexiva, apontando exclusivamente para a instância singular da sua própria enunciação. Enquanto os nomes funcionam pela obliteração do ato de nomear em favor do objeto nomeado, os indicadores como «eu», «aqui» e «agora» exibem o ato de fala como parte integrante do seu significado, instaurando uma «fala-mundo» onde a linguagem é um evento no mundo e não apenas um espelho dele.
  • O «eu» opera a junção paradoxal entre a singularidade absoluta do evento (cada enunciação é única) e a identidade da referência (o locutor designa-se a si mesmo), escapando à dicotomia entre a coisa inerte e o evento fugaz; ele não é uma coisa que fala, mas a emergência de uma subjetividade que se constitui no e pelo ato de se dizer, realizando a unidade indissolúvel entre o fato de ser e o fato de dizer.

O eu como condição da existência das coisas

  • A análise da individuação demonstra que nem os nomes próprios nem as descrições definidas são capazes, por si sós, de constituir os indivíduos singulares que povoam o mundo, pois os nomes pressupõem a existência prévia do indivíduo para nomeá-lo e as descrições permanecem no nível das generalidades conceituais que poderiam aplicar-se a múltiplos objetos. A individuação última do real repousa na indicação, no «isto» (tode ti) que aponta para o singular sem o qualificar, mas a própria indicação pressupõe um ponto de referência fixo a partir do qual o apontamento é feito.
  • O «eu» revela-se, assim, como a condição transcendental da individuação, o indicador primordial e fixo que ancora todos os outros dêiticos («aqui», «agora», «isto»); para que o mundo possa ser articulado em singularidades distintas, é necessário que o falante se posicione como um centro de perspectiva idêntico a si mesmo durante o ato de fala, de modo que a identidade do «eu» não é uma constatação empírica de uma substância psicológica, mas uma exigência a priori para que a referência e a identificação de qualquer objeto sejam possíveis.

O eu como condição de possibilidade da ação

  • A identidade do agente não é a de um substrato que preexiste aos seus atos, mas a de um «eu» que se produz e se confirma a cada ato, numa relação de pseudo-reflexividade onde o agente não é a causa eficiente do ato (como um evento causaria outro), nem o ato é um predicado analítico do agente. Na fórmula «eu ajo» ou «eu falo», não há dualidade ontológica entre uma substância e um acidente, mas a manifestação de uma única realidade dinâmica onde o dizer «eu» e o agir são co-extensivos; o «eu» é o agente que se constitui ao assumir a autoria do ato no presente da sua execução.
  • Essa constituição do agente é inseparável da dimensão interlocutiva, onde o «eu» se define em contraposição ao «tu»; a identidade do agente é ratificada pelo reconhecimento do outro, que, ao se dirigir a mim como «tu», confirma a minha posição de sujeito e a estabilidade da minha referência no discurso, criando uma rede de identidades recíprocas que sustenta a possibilidade da interação e da responsabilidade partilhada.

A causa dos atos

  • A aporia tradicional entre liberdade e determinismo dissolve-se quando se abandona a ontologia do evento (que vê os atos como elos numa cadeia causal de terceira pessoa) e a ontologia da pessoa (que vê os atos como emanações de uma natureza fixa), em favor de uma ontologia do ato baseada na primeira pessoa. Do ponto de vista do «eu», a pergunta pela causa do ato não remete a eventos mentais antecedentes (como desejos ou crenças vistos como causas eficientes), mas à enunciação de motivos que o próprio agente assume como seus; o motivo não é uma força que empurra o sujeito pelas costas, mas uma razão que o sujeito adota e valida no ato de agir.
  • Dizer «eu ajo porque…» não é descrever um mecanismo determinista, mas reivindicar a autoria integral tanto do ato quanto da sua justificação, de modo que a distinção entre voluntário e involuntário perde a sua relevância metafísica em favor da distinção entre o que é assumido pelo «eu» como ato seu e o que é sofrido como acontecimento; a liberdade não é uma propriedade misteriosa de uma vontade substantiva, mas o próprio modo de existência do «eu» que se subtrai à cadeia dos «porquês» infinitos ao se instaurar como o ponto de partida absoluto da ação.

O interrogativo ético

  • O fundamento da ética não reside num imperativo categórico que dita a lei a um sujeito passivo, mas num interrogativo ético primordial — «quem age?» ou «estou agindo?» — pelo qual o indivíduo suspende a naturalidade do curso dos eventos para se interrogar sobre a sua própria implicação no mundo. Antes de saber o que deve fazer (moral), o sujeito deve constituir-se como alguém que pode fazer (ética), transformando a indiferença dos fatos em campo de ação pessoal; o mal radical, nesta perspectiva, não é a transgressão de uma norma, mas a demissão do «eu», a recusa em responder à pergunta «quem age?» com um «sou eu», preferindo diluir-se na obediência anônima a leis, ordens ou necessidades históricas.
  • A universalidade da lei moral, longe de ser um dado abstrato que se impõe de fora, só ganha realidade quando assumida por um «eu» singular que se institui como legislador; a obediência cega à lei «universal» sem a mediação do «eu» crítico e agente é a porta aberta para a barbárie burocrática, onde ninguém age e tudo acontece. A ética começa, portanto, no momento em que o sujeito recusa a condição de coisa ou de canal de eventos para se afirmar, através do indicador «eu», como a origem irredutível de sentido e de ação no mundo.
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