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O Eu
(JLVB1981)
Talvez nos digam que é um arcaísmo querer refazer uma Fenomenologia do Espírito à maneira de Hegel. Podemos ainda utilizar as noções de consciência, de eu, de alma? Expliquemo-nos:
Biologicamente individual, o homem é um ser consciente na medida em que reflete sobre o que faz. Essa reflexividade certamente não é uma transparência de si para si; o inconsciente existe, age, faz parte integrante da consciência individual do homem ou de seu eu. Para nós, o termo Eu evoca Fichte e sua Doutrina da Ciência (Grundlage der Wissenschaftslehre, 1794) e Bergson em seu célebre Ensaio sobre os Dados Imediatos da Consciência (1889).
- Fichte concentra toda a subjetividade posta pela filosofia crítica de Kant e situa o Eu no plano da atividade cognitiva, visando estabelecer uma teoria do saber.
- Bergson, por sua vez, busca antes o eu vivo, o eu profundo, oculto até mesmo para a consciência pela vida social e pela esclerose do eu superficial.
Enquanto Fichte explora uma subjetividade universal que justifica a universalidade do conhecimento humano, Bergson preocupa-se sobretudo em reencontrar e libertar o élan espiritual de onde o eu se irradia em atividades diversas. Aqui, estaremos mais próximos de Bergson do que de Fichte, seguindo o caminho da individualização nas situações concretas oferecidas pela história, em busca de um saber diferente do de Fichte — um saber que é vida, uma gnosis fundamental.
É essa gnose que pode situar, sem aniquilá-la ou desprezá-la, o conhecimento científico — e não o contrário. O homem moderno exigiu demais da ciência e da história. A hora da desilusão chegou, após um século XIX ingênuo em sua confiança no futuro da ciência.
A tradição ocidental do //Eu//
A insistência na subjetividade, em Fichte e Bergson, é para nós um legado da mais firme tradição ocidental. Das Confissões de Santo Agostinho aos Dados Imediatos da Consciência, o Ocidente mergulhou na busca de seu eu verdadeiro.
- Para a Índia, o eu atual é passageiro, apenas uma encarnação em um longo ciclo de reencarnações — ilusões a serem transcendidas, sendo a santidade a libertação definitiva dele.
- Para o Ocidente, ao contrário, o eu é irreplaceável.
Concretamente, isso significa que cada um pode escapar da insignificância, ou seja, de um destino único — no sentido em que Georg Simmel, o grande filósofo e sociólogo alemão, diz que o destino é a convergência entre a necessidade interior do homem e os eventos objetivos de sua vida. Aí reside toda a ideia ocidental do eu: na vontade de encontrar um sentido onde interioridade e exterioridade se encontram.
O //Eu// entre o egoísmo e a liberdade
Talvez nos acusem de um egocentrismo mesquinho ao insistir no eu. “O eu é odioso”, diz Pascal. Mas ele não defende um dogmatismo cristão impessoal — condena antes uma autoanálise estéril, o que a psicanálise chamaria de eu narcísico, assim como Malraux dirá: “Não me interesso muito por mim”.
Devemos opor aqui um “eu servil” e um “eu livre”. O egoísmo e a servilidade fecham o eu sobre si mesmo. Já a liberdade do eu que o Ocidente reivindica e proclama é a de um eu que contempla em si mesmo a verdade universal.
- O eu superficial é o suporte das mesquinharias.
- Se buscamos viver no nível profundo e intenso onde se revela nossa necessidade interior, então nossa verdade íntima se simboliza em Verdade universal.
Nada é menos odioso do que deixar crescer, num élan contínuo, nossa realidade interior. Assim, poderemos fazer nossa a verdade universal — não no sentido de possuí-la, roubá-la e guardá-la ciosamente, mas de reinteriorizar o saber, de modo que nada nos seja imposto de fora e tudo adquira significado a partir de dentro.
Esse é o sentido último da odisseia da consciência que Hegel descreve em sua Fenomenologia do Espírito: superar tanto a ilusão histórica quanto a esperança celeste, realizando, no eu, a síntese entre o singular e o universal.
