Onfray (2025) – "Assim falou Zaratustra"
ONFRAY, Michel. L’été sans bord Journal hédoniste. Paris: Albin Michel, 2025.
A Alegria do Puro Prazer de Existir: Uma Exegese de Assim Falou Zaratustra
A obra Assim Falou Zaratustra, outrora caracterizada por Friedrich Nietzsche como um livro destinado a todos e a ninguém, permaneceu durante longo tempo inacessível à maioria dos leitores, configurando-se como um templo pagão criptografado onde a ausência das chaves hermenêuticas adequadas conduzia invariavelmente ao extravio nesse labirinto filosófico. Graças ao trabalho monumental de Pierre Heber-Suffrin, que oferece uma nova tradução e três volumes de comentários exaustivos, este vestíbulo da filosofia nietzschiana transforma-se em uma fortaleza acessível, exigindo do leitor uma ruminação paciente e uma convivência prolongada com o texto para que se possa finalmente vislumbrar o fio de Ariadne e compreender a verdadeira dimensão desta obra que transcende a mera literatura para se tornar um manual de vida.
A trajetória histórica da recepção do livro foi marcada por um profundo mal-entendido, iniciando-se com vendas irrisórias relatadas a Franz Overbeck e culminando na grotesca apropriação indébita pelo nacional-socialismo, facilitada pela distribuição da obra aos soldados na Primeira Guerra Mundial e pela manipulação criminosa perpetrada por Elisabeth Forster-Nietzsche. Esta irmã do filósofo, antissemita notória e aliada de Benito Mussolini e Adolf Hitler, foi a responsável pela falsificação editorial intitulada A Vontade de Poder, criando uma colagem de textos que distorceu o pensamento de Nietzsche para servir a fins fascistas, uma deturpação que, a despeito da defesa de Albert Camus e do ódio do filósofo pelo Estado e pelo antissemitismo, ainda encontra eco em certas leituras contemporâneas que falham em reconhecer a luta nietzschiana contra o ressentimento e o ideal ascético.
A complexidade intrínseca da obra, permeada de lirismo, ironia e referências intertextuais que abarcam desde a mitologia ocidental e oriental até a autobiografia travestida envolvendo Richard Wagner e Lou Salome, exige uma leitura que ultrapasse as traduções deficientes e as teses acadêmicas que projetam mais sobre o exegeta do que sobre o autor. A tradução de Hans Hildenbrand, apresentada por Pierre Heber-Suffrin, aliada a um comentário literal e minucioso, busca dissipar as brumas interpretativas para revelar que Assim Falou Zaratustra propõe fundamentalmente uma sabedoria prática, límpida e luminosa, afastando-se das obscuridades que povoam a biblioteca nietzschiana tradicional.
O conceito de super-homem, despido de suas armaduras medievais e interpretações bélicas, revela-se como um companheiro de jornada dos sábios da Antiguidade e do Oriente, alinhando-se a tradições como a dos heracliteanos, epicuristas, estoicos, pirronicos, shivaitas, bramanes e mazdeistas. Zaratustra, profeta desse estado de existência, anuncia a morte de Deus e o esvaziamento dos céus para consagrar a terra como único palco da vida sobre-humana, ensinando a vontade de potência como afirmação da força vital, a inexistência do livre-arbítrio e a doutrina do eterno retorno do mesmo, culminando no amor fati e na beatitude do puro prazer de existir, acessível a qualquer ser humano independentemente de gênero.
É imperativo resgatar a figura de Friedrich Nietzsche das calúnias acumuladas ao longo de um século, que o estigmatizaram injustamente como pré-fascista ou nacionalista, para finalmente reconhecê-lo como um mestre de lucidez, probidade intelectual e sabedoria prática. Em uma era niilista cujos sintomas foram por ele diagnosticados, a leitura proposta por Pierre Heber-Suffrin apresenta-se como revolucionária ao devolver a obra ao público geral, libertando-a do monopólio dos filósofos profissionais e dos funcionários do Estado que, de Karl Jaspers a Luc Ferry, passando por Martin Heidegger, Gilles Deleuze e Andre Comte-Sponville, negligenciaram frequentemente o caráter de conversão existencial e moral prática inerente a esta bíblia ateia.
A verdadeira intenção nietzschiana, sintonizada com o espírito da filosofia antiga, era que seu pensamento não se restringisse a uma matéria de cátedra universitária, mas se constituísse como uma aventura humana capaz de suscitar a conversão, termo este usurpado pelo cristianismo mas original da filosofia pagã. Os volumes comentados por Pierre Heber-Suffrin funcionam, portanto, como um manual para a vida sobre-humana, permitindo que o leitor contemporâneo acesse finalmente a essência do poema filosófico de Nietzsche e utilize seus ensinamentos para transfigurar a própria existência.
