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Volição

(Gil1998)

Assiste-nos então o direito de admitir uma consciência cujo teor, irredutível, é pelo menos triplo: o sujeito é portador da sua experiência, esta experiência é sentida e o seu conteúdo é formado por actos em que a vontade se realiza. A compreensão vive de todas estas dimensões da subjectividade. Limitar-nos-emos a apurar o lugar teórico da acção, uma vez que ela é o fundamento a priori das construções do espírito e remete para um estrato não intencional (Fichte descreveu-o, e indicou que a «satisfação do espírito», critério último da inteligibilidade, nele se enraiza ]). Como determinar as condições da acção e do querer? Limitando-nos à philosophy of mind e à mesma colectânea, vamos comentar um artigo de Brian O’Shaughnessy sobre a vontade e a um outro de Lawrence Davis sobre a acção ]. Servimo-nos destas descrições — embora breves elas tocam o essencial — somente no respeitante ao estatuto da vontade e da acção.

Chamemos V à volição (will), nela incluindo as tentativas de acção, coroadas ou não de êxito. Afirma-se a existência de V a partir de um argumento que coloca em primeiro plano o carácter não transmissível da experiência subjectiva assim como o seu carácter «qualitativo». Prima facie, V goza das propriedades seguintes:

(1) V é um acontecimento;

(2) O estatuto de V é psicológico;

(3) Nós «fazemos» V no sentido em que «fazemos» actos e tentativas (acts and tryings): este sentido é diferente das simples «causações» involuntárias das quais podemos ser os autores;

(4) O sentido psicológico de V é um «fazer»;

(5) O conteúdo de V é o «fazer» próprio à acção intencional ou à tentativa.

O autor havia antes explicado que «fazer» não se define pela intencionalidade, mas pela sua inerência ao sujeito e pela sua especificidade. «Não poderemos duvidar que haja um sentido da palavra ‘fazer’ que se acha reservado unicamente às actuações (actings), sejam intencionais sejam não-intencionais, e às tentativa de acção, quer tenham ou não êxito. ‘Que é que faz?’: ‘reparo a fechadura’, ‘estou a sonhar acordado’, ‘tento reparar a fechadura’, são três respostas aceitáveis; enquanto que ‘estou a reflectir a luz do Sol’, ou ‘provoco o conhecimento que tem da minha presença’ não o são» ].

Perguntar-se-á se as proposições (l)-(5), que estabelecem a realidade sui generis da volição sem ter em conta a sua eficácia, são inatacáveis (e se enunciam mais do que um truísmo). Tal não é contudo o caso. Imaginemos uma situação em que acreditamos erradamente ser vítimas de um erro enquanto que na realidade executamos uma ordem, por exemplo a ordem de abrir e fechar a mão. Com efeito, posso ter-me convencido que certas distorções artificialmente induzidas nos meus dispositivos visuais e proprioceptivos são uma causa permanente de erro; assim, a experiência que julgo sentir de abrir e fechar a mão constituiria uma ilusão óptica e muscular. Ora, mesmo neste caso, escreve O’Shaughnessy, «eu sei, e sei-o com a autoridade característica da experiência do presente e na primeira pessoa, que um acontecimento de um tipo activo (um ‘fazer’), causado mentalmente e imediatamente, se produziu. Sei, não só que quis obedecer à ordem, mas igualmente que fiz tudo o que era preciso fazer para a executar — e sei que um acontecimento, o movimento da minha mão, exprimiu essa situação» ]. Esta descrição marca a disparidade inultrapassável entre conhecer e agir, entendimento e vontade e, também, a irredutibilidade da vontade ao entendimento. A reflexão epistemológica que me fez emitir a hipótese (assente numa crença sem outro fundamento que esta mesma crença) que a volição é ilusória não tem força bastante para a obliterar fenomenologicamente; e fenomenologia quer também dizer ontologia posto que a experiência da volição atesta suficientemente a realidade do querer até nova ordem — ou seja, salvo dúvida hiperbólica ou uma melhor explicação, de que se não dispõe. Não se vislumbra por que razão se negaria à vontade o seu estatuto de ser.

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