Castoriadis – o que é o social-histórico?
Castoriadis1975
A pergunta: o que é o social-histórico? reúne em si as duas perguntas, que tradição e convenção geral separam, da sociedade e da história. Um breve exame do estatuto das respostas tradicionais será facilitado por uma formulação mais específica do núcleo dessas duas questões.
O que é a sociedade; especialmente, o que é a unidade e a identidade (ecceidade) de uma sociedade, o que é que dá unidade a uma sociedade?
O que é a história; especialmente, como e porque há alteração temporal de uma sociedade, em que é ela alteração, há emergência do novo nesta história, e que significa ela?
Podemos esclarecer melhor o sentido e a unidade dessas questões perguntando: em que e porque há várias sociedades e não uma só, em que e porque há diferença entre sociedades? Ainda que se dissesse que a diferença das sociedades, e sua história, são somente aparentes, ainda subsistiria, como sempre, a pergunta: porque então existe esta aparência, porque o idêntico aparece como diferente?
As inúmeras respostas fornecidas desde as origens da reflexão sobre essas duas perguntas podem ser reduzidas a dois tipos essenciais e a suas diversas combinações.
O primeiro tipo é o tipo fisicalista, que reduz direta ou indiretamente, imediatamente ou em última análise, sociedade e história à natureza. Esta natureza é, em primeiro lugar, a natureza biológica do homem; pouco importa que esta seja vista como, por sua vez, redutível ao simples mecanismo físico, ou como ultrapassando-o, por exemplo, ser genérico (Gattungswesen) para o jovem Marx, conceito hegeliano, que representa uma etapa ulterior de elaboração lógica-ontológica da physis do ser vivo aristotélico, aspecto/espécie (eidos) reproduzindo-se sempre e fixado para sempre. O funcionalismo é o representante mais puro e mais típico deste ponto de vista: ele se dá necessidades humanas fixas e explica a organização social como o conjunto das funções que visam satisfazê-las. Esta explicação, já o vimos mais acima, não explica nada. Uma quantidade de atividades em toda sociedade não preenche nenhuma função determinada no sentido do funcionalismo e, sobretudo, a questão mesma que importa, a da diferença das sociedades, é eliminada ou encoberta por banalidades. A pretensa explicação permanece no ar, na ausência de um ponto estável ao qual pudesse relacionar as funções a que serviria a organização social; esse ponto estável só poderia ser fornecido pela postulação de uma identidade de necessidades através das sociedades e dos períodos históricos, identidade que a observação mais superficial da história contradiz. Devemos então recorrer à ficção de um núcleo inalterável de necessidades abstratas, que receberiam cá ou lá especificações diferentes ou meios de satisfação variáveis, e a banalidades ou tautologias para explicar esta diferença e esta variabilidade. Encobrimos assim o fato essencial: as necessidades humanas, enquanto sociais e não simplesmente biológicas, são inseparáveis de seus objetos, e tanto umas quanto outros, instituídos a cada vez pela sociedade considerada. O mesmo se dá em relação às imposturas correntemente propagadas desde que o “desejo” ficou na moda; reduz-se de fato a sociedade ao desejo e à sua repressão, sem o cuidado de explicar a diferença dos objetos e das formas do desejo e sem surpreender-se ante esta estranha divisão do desejo em desejo e desejo de repressão do desejo que deve caracterizar, de acordo com elas, a maioria das sociedades, a possibilidade desta divisão, e as razões de sua emergência.
O segundo tipo é o tipo logicista, que se reveste de formas diferentes segundo a acepção, neste termo, do radical log-. Quando a lógica em questão consiste finalmente (quaisquer que sejam suas complicações de superfície) em ordenar um número finito de pedras brancas e pretas num número predeterminado de casas, segundo algumas regras simples (por exemplo, não mais do que n pedras da mesma cor na mesma linha ou coluna), temos a forma mais pobre do logicismo, o estruturalismo. A mesma operação lógica, repetida um determinado número de vezes, também explicaria a totalidade da história humana e as diferentes formas de sociedade, que seriam apenas as diferentes combinações possíveis de um número finito dos mesmos elementos discretos. Esta combinatória elementar — que põe em ação as mesmas faculdades intelectuais que as utilizadas na construção de cubos mágicos ou de palavras cruzadas — deve cada vez dar-se como indiscutíveis tanto o conjunto finito de elementos a que se referem suas operações, como as oposições ou diferenças que postula entre eles. Mas mesmo em fonologia — da qual o estruturalismo é apenas uma extrapolação abusiva —, não podemos apoiar-nos no dado natural de um conjunto finito de elementos discretos — fonemas ou traços distintivos podendo ser emitidos ou percebidos pelo homem; como já sabia Platão, sons emitidos e percebidos são um indeterminado apeiron, e o peras, a determinação, a posição simultânea de fonemas e de suas diferenças pertinentes é uma instituição pela língua e cada língua. Esta instituição, e suas diferenças, — a diferença entre a fonologia do francês e a do inglês, por exemplo — são recebidas pela fonologia como um fato e ela não está obrigada a interrogá-las; saber positivo e limitado, ela pode deixar adormecida a questão da origem de seu objeto. Como poderíamos fazer o mesmo, quando a questão da sociedade e da história é essencialmente questão da natureza e da origem das diferenças? A ingenuidade do estruturalismo a este respeito é desarmante. Não tem nada a dizer sobre os conjuntos de elementos que manipula, sobre as razões de seu ser-assim, sobre suas modificações no tempo. Masculino e feminino, norte e sul, alto e baixo, seco e úmido, para ele não precisam ser questionados, parecem-lhe encontrados aí pelos homens, pedras de sentido jazendo na Terra desde as origens num ser-assim, ao mesmo tempo plenamente natural e totalmente significativo, dentre as quais cada sociedade retira algumas (segundo o resultado de um jogo do acaso), sendo estabelecido que ela só pode retirá-las por pares de opostos, e que a retirada de certos pares ocasiona ou exclui a de outros. Como se a organização social pudesse ser reduzida a uma sequência finita de sim/não, e como se, lá mesmo onde um sim/não está em ação, os termos a que se refere fossem determinados sob outro ponto de vista e desde sempre — quando eles são, como termos e como estes termos, criação da sociedade considerada.
Ou então, no extremo oposto e sob sua forma mais rica, a lógica pretende revolver todas as figuras do universo material e espiritual. Não aceitando nenhum limite, ela quer e deve fazer com que todas entrem em jogo, em relação umas com as outras, em determinidade realizada e determinação recíproca exaustiva. Ela deve então também engendrar umas a partir das outras, e todas a partir do mesmo elemento primeiro ou último, como suas figuras ou momentos necessários e necessariamente desdobrados nesta ordem necessária, da qual ela própria deve necessariamente fazer parte como reflexo, reflexão, repetição ou coroamento. Não tem nenhuma importância que este elemento se denomine razão, como no hegelianismo, matéria ou natureza, como na versão canônica do marxismo (matéria ou natureza redutíveis, de direito, a um conjunto de determinações racionais). Já indicamos, na primeira parte deste livro, algumas das inúmeras e intermináveis aporias às quais conduz esta concepção.
Assim, a questão da unidade e da identidade da sociedade e de tal sociedade reduzida à afirmação de uma unidade e identidade dadas de um conjunto de organismos vivos; ou de um hiper-organismo comportando suas próprias necessidades e funções; ou de um grupo natural-lógico de elementos; ou de um sistema de determinações racionais. Da sociedade como tal não sobra, em tudo isso, nada; nada que seja o ser próprio do social, que manifeste um modo de ser diferente do que já sabíamos. Também não resta grande coisa da história, da alteração temporal produzida em e pela sociedade. Diante da questão da história, o fisicalismo torna-se naturalmente causalismo, ou seja, supressão da questão. Pois a questão da história é questão de emergência da alteridade radical ou do novo absoluto (do que seria testemunho a própria afirmação do contrário, já que nem as amebas nem as galáxias falam para dizer que tudo é eternamente igual); e a causalidade é sempre negação da alteridade, posição de uma dupla identidade: identidade na repetição das mesmas causas produzindo os mesmos efeitos, identidade última da causa e do efeito, posto que cada um pertence necessariamente ao outro ou os dois a um mesmo. Não é pois por acaso, se o próprio elemento no e pelo qual se desdobra eminentemente o social-histórico, isto é, as significações, é ignorado ou então transformado em simples epifenômeno, acompanhamento redundante do que se passaria realmente. De fato, como poderia uma significação ser causa de uma outra significação, e como poderiam significações ser efeitos de não-significações?
Corresponde igualmente à supressão da questão da história a forma que assume frente a ela o logicismo, tornando-se finalismo racionalista. Porque se ele vê nas significações o elemento da história, ele é incapaz de considerar essas significações de outra maneira que não como racionais (o que não implica, é claro, que deva colocá-las como conscientes para os agentes da história). Mas significações racionais devem e podem ser deduzidas ou produzidas umas a partir das outras. Seu desdobramento é a partir daí somente amostra, o novo é cada vez construído por operações identitárias (ainda que denominadas dialéticas) mediante o que já existia; a totalidade do processo é apenas a exposição das virtualidades necessariamente realizadas de um princípio originário presente desde sempre e no sempre. O tempo histórico torna-se, assim, simples medium abstrato da coexistência sucessiva ou simples receptáculo dos encadeamentos dialéticos; o tempo verdadeiro, tempo da alteridade radical, alteridade não dedutível e não produzível, deve ser abolido, e nenhuma razão que não seja contingente pode explicar porque a totalidade da história passada e futura não seria de direito dedutível. O fim da história incomoda os comentadores de Hegel, porque parece-lhes absurdo que se situe em 1830; compreensão insuficiente das necessidades do pensamento do filósofo, para o qual este fim já havia ocorrido antes que a história começasse. Porque a história não pode ser Razão, se não tem uma razão de ser, que é seu fim (telos), que lhe é tão necessariamente fixado (portanto desde sempre) quanto as vias de sua progressão. Essa é apenas uma outra maneira de dizer que o tempo é abolido como o é em toda teleologia verdadeira; porque para toda teleologia realizada e necessária, tudo é dirigido a partir do fim, que é estabelecido e determinado desde a origem do processo, estabelecendo e determinando os meios que o farão aparecer como realizado. O tempo é, nestas condições, apenas um pseudônimo da ordem de colocação e de engendramento recíproco dos termos do processo, ou, como tempo efetivo, simples condição exterior que nada tem a ver com o processo como tal. Já indiquei mais acima, e em outro lugar também, que o marxismo canônico representa uma tentativa de junção dos pontos de vista causalista e finalista.
Observemos que além da incapacidade contingente dos representantes do estruturalismo para enfrentar o problema da história (a não ser para negar, mais ou menos claramente, que tal problema existe) nada impediria de colocar a ficção de uma estrutura da história em seu desenvolvimento temporal; ou melhor, que o postulado de uma tal estrutura seria necessário para uma concepção estruturalista que quisesse ser consequente. A bem da verdade, não se pode levar a sério o estruturalismo como concepção geral enquanto não ousa afirmar que as diferentes estruturas sociais que pretende descrever só são, elas próprias, elementos de uma hiper- ou meta-estrutura que seria a história total. E como isso equivaleria a encerrar a história em ideia — falar de estrutura não significa nada se não se pode determinar, de uma vez por todas, seus elementos e suas relações — e a colocar-nos no lugar do saber absoluto, também não poderíamos levá-lo a sério neste caso.
O que importa verdadeiramente aqui, não são as concepções como tais, nem sua crítica, e menos ainda a crítica dos autores. Nos autores importantes, as concepções nunca são puras, seu exercício em contato com o material que tentam pensar desvenda algo diferente daquilo que eles pensam explicitamente, os resultados são infinitamente mais ricos do que as teses programáticas. Um grande autor, por definição, pensa mais além de seus meios. Ele é grande, na medida em que pensa o que ainda não tinha sido pensado, e seus meios são o resultado do que já tinha sido pensado, que nunca cessou de interferir no que ele pensa, quando mais não fosse, porque não pode anular tudo o que recebeu e colocar-se diante de uma tábula rasa, mesmo quando tem a ilusão de fazê-lo. Prova disso são as contradições sempre presentes num grande autor; falo das contradições verdadeiras, grosseiras, irredutíveis, que é tão estúpido pensar que por si sós anulam a contribuição do autor, quanto inútil tentar dissolvê-las ou recuperá-las em níveis sucessivos de interpretação mais profunda.
A forma mais plena, mais rica de que se revestem essas contradições é a que resulta da impossibilidade de pensar simplesmente em conjunto e pelos mesmos meios o que o autor descobre — que é, nos casos importantes, uma outra região daquilo que é um outro modo e um outro sentido de: ser — e o que já era conhecido. Nada garante previamente a coerência, ou, mais exatamente, a identidade (imediata ou mediatizada) do modo de ser dos objetos de uma nova região, portanto da lógica e da ontologia que uma tal região exige, e da lógica e da ontologia já elaboradas sob outros pontos de vista, menos ainda que esta coerência será da mesma ordem e do mesmo tipo que a que existe no interior das regiões já conhecidas. Em particular as regiões de que se trata aqui — o imaginário radical e o social-histórico — implicam um questionamento profundo das significações recebidas do ser como determinidade e da lógica como determinação. Na medida em que o conflito que daí resulta é percebido pelo autor, ele tende a ser resolvido pela subordinação do novo objeto às significações e às determinações já adquiridas, propiciando o encobrimento do que foi descoberto, a ocultação do que foi desvendado, sua marginalização, a impossibilidade de tematizá-lo, sua desnaturação por reabsorção num sistema no qual permanece estrangeiro, sua permanência sob forma de aporia irredutível.
Assim, Aristóteles descobre filosoficamente a imaginação — phantasia — mas o que ele diz a respeito, tematicamente, quando trata disso ex professo (quando fixa a imaginação em seu pretenso lugar, entre a sensação da qual seria uma reprodução, e a intelecção, e assim domina há vinte e cinco séculos o que todo mundo pensa a respeito) pesa pouco ao lado do que ele tem verdadeiramente a dizer, que ele diz fora de lugar, e que não há meio de reconciliar com o que pensa da physis, da alma, do pensamento e do ser. Assim também Kant, pelo mesmo movimento em três ocasiões (nas duas edições da Crítica da razão pura, e na Crítica da faculdade de julgar) descobre e encobre o papel do que denomina de imaginação transcendental. Assim também Hegel, e incomparavelmente mais Marx, que não podem dizer o que têm a dizer de fundamental sobre a sociedade e a história, a não ser transgredindo o que julgam saber sobre o que ser e pensar significam, e o reduzem finalmente introduzindo-o à força num sistema que não pode contê-lo. Assim, enfim, Freud, que desvenda o inconsciente, afirma seu modo de ser incompatível com a lógica-ontologia diurna, e no entanto só consegue pensá-lo, até o fim, invocando toda a maquinaria dos aparelhos psíquicos, das instâncias, dos lugares, das forças, das causas e dos fins, acabando por ocultar sua indeterminação enquanto imaginação radical.
A reprodução destas situações com traços essencialmente análogos e em se tratando de espíritos tão profundos e tão audaciosos, mostra que aqui atuam fatores fundamentais. A lógica-ontologia herdada está solidamente ancorada na própria instituição da vida social-histórica; ela se enraiza nas necessidades inelimináveis desta instituição, ela é, em certo sentido, elaboração e arborescência dessas necessidades. Seu núcleo é a lógica identitária ou conjuntista, e esta lógica que impera soberanamente e inevitavelmente em duas instituições sem as quais não há vida social; a instituição do legein, componente ineliminável da linguagem e do representar social, a instituição do teukhein, componente ineliminável do fazer social. O fato de que uma vida social tenha podido existir mostra que esta lógica identitária ou conjuntista tem apoio no que existe — não somente no mundo natural no qual a sociedade surge, mas na própria sociedade, que não pode representar e se representar, dizer e se dizer, fazer e se fazer sem colocar em ação também esta lógica identitária ou conjuntista, que só pode instituir e se instituir instituindo também o legein e o teukhein.
Esta lógica — e a ontologia que lhe é homóloga — longe de esgotar o que é o seu modo de ser, só concerne a um primeiro estrato; mas ao mesmo tempo sua exigência interna é de cobrir ou esgotar todo estrato possível. A problemática esboçada mais acima é somente a concretização, nos domínios do imaginário e do social-histórico, desta antinomia. Fisicalismo e logicismo, causalismo e finalismo são apenas maneiras de estender as exigências e os esquemas fundamentais da lógica identitária à sociedade e à história. Porque a lógica identitária é lógica da determinação, que se especifica segundo os casos como relação de causa a efeito, de meio a fim, ou de implicação lógica.
Ela só pode operar colocando essas relações como relações entre elementos de um conjunto (no sentido que têm esses termos na matemática contemporânea, mas que está em ação desde a instituição do legein e do teukhein); é isso o essencial, e não o fato de qualificar o modo de ser desses elementos como o de entidades físicas ou de termos lógicos. Porque, de toda maneira, tanto para ela, como para a ontologia que dela decorre, ser significa ser determinado, e somente a partir dessa posição se desenvolvem as oposições concernentes à questão de saber o que é que é verdadeiramente, isto é, o que é que é verdadeira, sólida e plenamente determinado. Sob este ponto de vista, não somente a oposição entre materialismo e espiritualismo é secundária; mas é também secundária a oposição entre Hegel e Gorgias, por exemplo, entre o saber absoluto e o absoluto não-saber. Na verdade, os dois participam da mesma concepção do ser, o primeiro colocando-o como autodeterminação infinita e a força dos argumentos do segundo (como de todos os argumentos céticos e nihilistas que já foram enunciados) — quando quer demonstrar que nada é, e se alguma coisa é não é cognoscível — resultando em que nada é verdadeiramente determinável, que a exigência de determinação deve permanecer para sempre vazia e insatisfeita, porque toda determinação é contraditória (portanto indeterminação) — o que só tem sentido a partir deste critério tácito: se alguma coisa existisse ela seria determinada.
A discussão das concepções herdadas da sociedade e da história é, pois, inseparável do esclarecimento de seus fundamentos lógicos e ontológicos; assim como sua crítica só pode ser crítica desses fundamentos e elucidação do social-histórico como irredutível à lógica e à ontologia herdadas. A tipologia das respostas à questão da sociedade e da história, descrita mais acima, importa na medida em que esses tipos de respostas são os únicos possíveis a partir desta lógica-ontologia. Eles concretizam as maneiras pelas quais são concebíveis, para o pensamento herdado, uma coexistência e uma sucessão, o ser, o ser-assim e a razão de ser (o porque) de uma coexistência e de uma sucessão.
