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A lucidez da praxis

Castoriadis1975

A praxis é, por certo, uma atividade consciente, só podendo existir na lucidez; mas ela é diferente da aplicação de um saber preliminar (não podendo justificar-se pela invocação de um tal saber — o que não significa que ela não possa justificar-se). Ela se apoia sobre um saber, mas este é sempre fragmentário e provisório. É fragmentário, porque não pode haver teoria exaustiva do homem e da história; ele é provisório, porque a própria praxis faz surgir constantemente um novo saber, porque ela faz o mundo falar numa linguagem ao mesmo tempo singular e universal. É por isso que suas relações com a teoria, a verdadeira teoria corretamente concebida, são infinitamente mais íntimas e mais profundas do que as de qualquer técnica ou prática “rigorosamente racional” para a qual a teoria não passa de um código de prescrições mortas não podendo nunca encontrar o sentido daquilo que maneja. A constituição paralela da prática e da teoria psicanalítica por Freud, de 1886 até sua morte, fornecem provavelmente a melhor ilustração desta dupla relação. A teoria não podia ser dada previamente, pois ela emerge constantemente da própria atividade. Elucidação e transformação do real progridem, na praxis, num condicionamento recíproco. Ê exatamente esta dupla progressão que é a justificação da praxis. Porém, na estrutura lógica do conjunto que formam, a atividade precede a elucidação; porque, para a praxis, a última instância não é a elucidação, e sim a transformação do dado ].

Falamos do saber fragmentário e provisório e isso pode dar a impressão de que o essencial da praxis (e de todo o fazer) é negativo, uma privação ou uma deficiência com referência a uma outra situação que, ela, seria completa, disporia de uma teoria exaustiva ou do Saber absoluto. Mas esta aparência está ligada à linguagem, submetida a uma maneira milenar de expor os problemas, e que consiste em julgar ou em pensar o efetivo segundo o fictício. Se estivéssemos certos de ser compreendidos, se não tivéssemos que considerar os preconceitos e pressupostos tenazes que dominam os espíritos, até os mais críticos, diríamos simplesmente: a praxis apoia-se sobre um saber efetivo (limitado, é claro, provisório, é claro — como tudo que é efetivo) e não teríamos sentido necessidade de acrescentar: sendo uma atividade lúcida, evidentemente, não pode invocar o fantasma de um saber absoluto ilusório. O que fundamenta a praxis não é uma deficiência temporária do nosso saber, que poderia ser progressivamente reduzida; é ainda menos a transformação do horizonte presente, do nosso saber em limite absoluto ]. A lucidez “relativa” da praxis não é um mal menor, algo na falta de coisa melhor — não somente porque um tal “melhor” não existe em parte alguma, mas porque ela é o outro lado de sua substância positiva: o próprio objeto da praxis é o novo, o que não se deixa reduzir ao simples decalque materializado de uma ordem racional pré-constituída, em outros termos, o próprio real e não um artefato estável, limitado e morto.

Esta lucidez “relativa” corresponde igualmente a um outro aspecto da praxis também essencial; é que seu próprio sujeito é transformado constantemente a partir desta experiência em que está engajado e que ele faz, mas que o faz também. “Os pedagogos são educados”, “o poema faz seu poeta”. E é óbvio que daí resulta uma modificação contínua, no fundo e na forma, da relação entre um sujeito e um objeto os quais nunca podem ser definidos de uma vez por todas.

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