Kostas Axelos (2023) – Ser-Nada, Tudo-Nada
AXELOS, Kōstas. The game of the world. Tradução: Justin Clemens; Tradução: Hellmut Monz. Edinburgh: Edinburgh University Press, 2023.
Habita-se um mundo de conceitos arruinados e palavras gastas, onde concepções de mundo esvaziadas formam o cenário de necrópoles agitadas e desertos mobilizados; embora todos os horizontes pareçam bloqueados e a própria questão do horizonte se torne enigmática, continua-se a viver e trabalhar nesta realidade que, sendo muito mais sólida do que aparenta, suporta choques, digere crises e assimila negatividades enquanto marcha em direção ao seu futuro. Antes de qualquer revisão ou fundação de uma nova visão das coisas, é imperativo compreender o que impede a visão da onda conquistadora do niilismo, pois uma revisão que ignora o processo de aniquilação em desenrolar incessante falha em sua missão; o niilismo não é um erro, uma aberração ou uma doença, mas começa a englobar tudo o que é e se faz, constituindo o problema central de um mundo planetário que desconhece seus fundamentos e seu destino, tornando extremamente difícil falar sobre ele na totalidade fragmentada, salvo talvez por meio de uma sistemática fragmentária e aforística.
Todos os impulsos místicos encontram-se consolidados em Igrejas, os movimentos revolucionários em Estados burocráticos, as pesquisas do pensamento em Universidades esclerosadas e as aventuras da existência humana em Famílias autárquicas e hipócritas; petrificadas e putrefatas, estas instituições continuam a administrar vidas humanas, forçando a conformidade e conduzindo os renegados à perdição, aparentando ser as únicas formas organizadoras de fé, trabalho, pensamento e amor, muito embora todas essas moradas, das fundações ao teto, estejam carcomidas. Quando as estruturas e instituições sociais, religiosas e políticas evacuam sua substância e se desintegram, e quando tudo o que é e se faz carrega o selo da irrealidade e da representação teatral, sucumbindo à vontade de positividade em meio à destruição, resta apenas continuar o jogo para aqueles que não podem fazer de outra forma, avançando sem nervosismo excessivo e sem fatalismo, antecipando e recomeçando sempre até o flash final e fatal.
O niilismo opera um assassinato sistemático das dimensões fundamentais da existência: mata a religião, questionando se o sagrado e o divino podem sobreviver para contribuir na superação do niilismo; mata a poesia e a arte, interrogando se a palavra, o canto e a plasticidade dos fenômenos continuarão a manifestar-se; mata a política e a filosofia, colocando em dúvida se o destino histórico e o pensamento mantêm alguma chance de governar os humanos ou de desvelar a verdade. Aliado à técnica, gerando-a e sendo por ela gerado, o niilismo transforma tudo em uma questão de produção e consumo, uma técnica de usura que abrange o religioso, o literário, o político, o científico e o erótico, onde tudo é destinado a cessar de ser e a ser consumido; contudo, o niilismo repousa sobre a ciência e a metafísica, ocultando o pensamento ativo que é seu fundamento primeiro, um pensamento que se desenvolve até o esgotamento da última parcela de sua verdade ou até a intervenção de uma catástrofe planetária.
A metafísica abre o caminho para o niilismo ao excluir o ser dos entes e ao tornar o ser um ente que se aniquila, de modo que o niilismo não apenas realiza a destruição da metafísica e da ética, mas as cumpre ao realizar simultaneamente o objetivo e a falta da metafísica; tudo o que a metafísica almejava na distância, o niilismo quer tornar efetivo num processo de atualização constante, revertendo o mundo suprassensível em benefício do sensível e visível, onde razão, liberdade, felicidade e progresso são generalizados, socializados e esvaziados de conteúdo, restando apenas o ideológico e o moralismo vil. O niilismo inicia-se explicitamente com a ontologia e com a distinção entre ser e nada que os acorrenta um ao outro, fazendo com que o mito do autêntico se revele como uma das armadilhas maiores da metafísica que engendrou o niilismo; ao perder todos os vínculos com as raízes nutridoras, o niilismo quer ser radical e radicalista, sendo sua realidade total apátrida, pois nenhuma pátria pode conter a totalidade abstratamente universal e reduzida a si mesma.
No reino democrático do niilismo, que se estende por todo o planeta a partir do Ocidente, o ego cartesiano do cogito foi ultrapassado e coletivizado na marcha do socialismo, e o humanismo subjacente deseja considerar o humano como sua própria raiz e fundamento; cortado de qualquer solo, evoluindo num terreno mecanizado sob um céu vazio, o humano torna-se um ser radicalmente desorientado, onde toda pergunta sobre o “porquê” provoca, na indiferença generalizada, a resposta “por que não?”, abolindo-se todas as distinções entre rosto e máscara, natural e artificial. A platitude sombria, a vulgaridade, o domínio da média, a pressão da norma e a fuga impotente para o pseudo-imaginário são apenas os sinais externos e o envelope espesso da significação profunda do niilismo aniquilador, onde a chamada realidade real da vida cotidiana total tende a tornar-se o horizonte da totalidade “real”, permanecendo, todavia, vazia.
Tentativas de apreender o niilismo religiosa, filosófica, científica ou sociologicamente falham, pois quem tenta capturá-lo permanece capturado por ele; os mais niilistas são aqueles que, de maneira estúpida, não o reconhecem e fingem combatê-lo sem ver a própria face em seu espelho deformante. O niilismo significa a aniquilação do sentido fundador — e talvez sagrado — graças ao qual poderes como filosofia, arte e história poderiam ser fecundados, significando a aniquilação sem recurso do ser em devir, da totalidade aberta do que é e da verdade do devir temporal; não se pode esperar conter sua marcha conquistadora, pois sua vitória quase total iniciará o processo de sua derrota, devendo o niilismo, antes de ser superado, cumprir-se e ser compreendido.
O leitor e o interlocutor estão apanhados neste mecanismo niilista supremo que implica o mundo todo, e ninguém deve imaginar-se fora ou acima desta maquinaria, pois a indiferença e a insignificância são tais que cada um confronta “tudo isso” como se não lhe dissesse respeito mortalmente; a vida verdadeira está ausente, o mundo não é, e cada pessoa vai para onde deve, rastejando mesmo quando parte para o domínio da terra ou ascende para assaltar o céu. Enquanto pensadores “malditos” como Rimbaud, Dostoievski e Nietzsche — que ousaram ver e sobre os quais a sociedade se lançou como hienas ou converteu em porta-vozes ideológicos — não forem seguidos por um trabalho de toupeira na imensa abertura onde todas as coisas se fundem, permanecer-se-á aquém do niilismo; tudo isto permanece estranho aos professores, jornalistas e políticos gerentes, cuja inteligência média e medíocre é funcional para o niilismo planetário, onde “tudo ou nada” é um slogan ingenuamente totalitário e onde, entre algo e nada, nem sempre se esconde uma diferença.
O niilismo é o berço e o túmulo de todos os totalitarismos, existindo apenas em relação ao que aniquila, e flanqueia tudo o que é com um “anti” (anti-linguagem, anti-pensamento, anti-deus, anti-natureza), abrindo a questão de se é possível existir uma lucidez que mata ou se a vida desmistificada pode continuar a desdobrar-se. A grande tentação do vazio e o cavalgar o nada impõem-se como tarefas que levam ao limiar de uma experiência onde se joga o jogo da passagem do tudo ao nada e do nada às coisas; o niilismo realiza a predição da pregação paulina de que não haverá nem homem nem mulher, nem judeu nem cristão, e, ao não pregar nem a vida nem a morte, aniquila ambas, podendo ensinar a viver antes de morrer, sem razões que tornem a vida suportável ou insuportável.
A entrada do niilismo no devir-pensamento do mundo remonta a intuições antigas: o sofista pré-socrático Gorgias, dissociando a identidade parmenidiana ser-pensamento, declara que nada é, ou se é, é incompreensível e incomunicável; Protagoras, com suas palavras duplas e o homem como medida, e o nada de Gorgias, permanecem enigmáticos, inaugurando talvez o humanismo e o niilismo. A filosofia que se constitui de Platão a Hegel esquiva-se da questão do nada chamando o ser do mundo de Ideia, Deus ou Espírito; na concepção judaico-cristã, o mundo criado ex nihilo permanece equívoco, afetado pelo ser e pelo nada, e a dualidade aprofunda-se até que a modernidade secular, herdeira do cristianismo, estabelece o terreno do niilismo onde nada é verdadeiro e tudo é igualmente permitido, deixando o humano isolado, como já apontara Duns Scotus com a persona est ultima solitudo.
Para Descartes, o sujeito ou ego torna-se a medida do Ser, mas o humano permanece no vazio, procurando ser fundador e imperialista enquanto se torna vacilante; é no horizonte do idealismo alemão e do romantismo que o problema do niilismo emerge com força. Kant, na Crítica da Razão Pura, define o nada de quatro formas (conceito vazio sem objeto, objeto vazio de conceito, intuição vazia sem objeto, objeto vazio sem conceito), construindo um sistema onto-lógico engenhoso; Fichte coloca o eu face ao não-eu, e escritores românticos como Tieck, Jean Paul e o autor de Vigílias de Bonaventura exploram o niilismo poético, a ironia e o nada, onde o individualismo e o jogo terminam no nada porque fundados sobre o nada.
Hegel, na Fenomenologia do Espírito, critica a consciência infeliz e a morte de Deus, tentando reconciliar tudo numa mediação que fecha um capítulo greco-cristão mas deixa a porta aberta para o historicismo; os grandes anti-hegelianos — Kierkegaard com sua ironia existencial, Marx com a supressão das alienações que arrisca terminar no mesmo nada da repetição, e Nietzsche — vão à guerra contra o espírito total. O niilismo russo, de Turgenev a Dostoievski, populariza o termo e expõe a lógica de que se Deus não existe, tudo é permitido; contudo, é com Nietzsche que o niilismo mostra suas máscaras, definindo-se como a desvalorização dos valores superiores e a vontade de poder que, se a vida é desprovida de sentido, deve repô-la em movimento, culminando na figura do “sobre-humano” e no eterno retorno, enquanto a humanidade vive tempos intermediários sob o espírito de vingança.
O complexo idealismo-romantismo-individualismo burguês e o materialismo-positivismo-coletivismo socialista perfilam o niilismo planetário, onde o ego, o sujeito ou a coletividade desejam aniquilar o que se opõe e a si mesmos; o niilismo diz a morte da physis (o grande Pan está morto), a morte de Deus e o fim do Humano, fazendo com que o sujeito marche para sua dissolução ou para uma solução desconhecida. A sociedade industrial avançada e a civilização do vazio capturam a contestação, produzem e consomem tudo como se fosse nada, e a democracia radical nivela tudo numa indiferença crescente que esconde o nada; contudo, o niilismo, ao nihilizar o ser e o nada, nihiliza-se a si mesmo, aniquilando tudo o que o precedeu e o que o seguirá, numa equação onde nada é verdadeiro e tudo é real.
O jogo da errância prossegue, estruturado e desestruturado, onde se vive nihilizando verdade e erro, e onde o tempo e o jogo visam uma transgressão aceitadora do niilismo; a natureza morta é explorada pela técnica, Deus morto é recuperado pelo ecumenismo, e o sujeito quebrado é socializado e medicado. A recusa quase total do mundo existente permanece cheia de inconsequências, pois todo niilismo é incompleto e deixa sua própria base intacta; resta o esforço pacífico de situar-se na ausência da natureza, a tensão do pensamento que questiona, a fidelidade ao inesquecível, a estranheza invasiva do amor e a participação desencantada em movimentos políticos, mantendo a nostalgia por uma natureza cósmica e a espera por uma natureza futura. O que é mais forte que o niilismo? O jogo do mundo.
