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O discurso sofístico é o paradigma de um discurso que faz coisas com palavras. Não é certamente um “performativo” no sentido austiniano do termo, embora, como veremos, o sentido austiniano varie consideravelmente em extensão e intenção. Mas é sem dúvida um discurso que opera, que transforma ou cria o mundo, ou um mundo, que tem um “efeito-mundo”.
A relação com Austin e com a performatividade é ainda mais tentadora porque epideixis, a palavra que serve terminologicamente para designar em Platão o discurso sofístico, não pode ser melhor traduzida do que por “performance”, desde que se entenda “performance” pelo menos também no sentido da estética contemporânea, como um happening, um evento, uma improvisação que exige engajamento – Górgias é o inventor do discurso ex tempore, diz Filóstrato: é, cada vez, algo como uma obra-prima e um feito.
“Performative”/”performativo” é por sua vez uma invenção de Austin, aclimatada no francês pelo próprio Austin desde o colóquio de Royaumont, e imediatamente justificada, apropriada e popularizada por Émile Benveniste, que começa por ressaltar que a palavra é regularmente formada, como resultativo, predicativo, ou seu outro termo austiniano, o constativo. Ao contrário do constativo, que descreve o que é ou o que faço, o performativo age: um enunciado performativo não descreve algo, ele o faz, “it is to do it”. Quando as condições de felicidade são preenchidas, quando o magistrado encarregado pronuncia a fórmula no momento certo, “a sessão está aberta” efetivamente abre a sessão. Como diz Benveniste de forma econômica, “o enunciado é por si mesmo um ato. O enunciado é o ato”. Tal é a definição do performativo, revolucionariamente simples, mesmo que a coisa tenha sido praticada e refletida ao longo dos séculos como palavra sacramental.
A nova palavra, ressalta Benveniste, apoia-se no velho termo francês performance:
“Já que performance já entrou no uso, não haverá dificuldade em introduzir performativo no sentido particular que tem aqui. Aliás, apenas se reintroduz no francês uma família lexical que o inglês tomou do francês antigo.”
O inglês, por sua vez, segundo o Klein’s Comprehensive Etymological Dictionary of English Language, teria forjado performance sobre o antigo francês “parfournir” (do latim medieval perfurnire) ou/e “parformer”, antes que o francês o tomasse emprestado pelo menos três vezes, segundo o Dictionnaire culturel de la langue française de Alain Rey: em 1869, por analogia com o vocabulário dos turfistas, significa a “maneira de desenvolver um assunto, de executar uma obra em público”; em 1953, significa o “resultado individual no cumprimento de uma tarefa”; em 1963, opõe-se, no rastro de Chomsky, à “competência”. É um termo bilíngue e em movimento, que reúne o esporte (performance-recorde), a técnica (performance-rendimento de uma máquina), a psicologia (teste de performance), a linguística (performance/competência) e a arte moderna (performance-happening – sem esquecer em inglês a representação teatral).
À luz da sofística, torna-se possível esclarecer a relação entre performance e performativo, a partir do que eu chamaria de “a performance anterior ao performativo”. É também o estatuto da retórica, no passado e no presente, que é preciso colocar em movimento, longe das certezas platônico-aristotélicas que permanecem em grande parte as da filosofia e, sub-repticiamente convenientes, as de todos. Retórica à qual Austin reserva, aliás, mas sem nomeá-la, um lugar um tanto instável entre o “locutório” por um lado, e o “ilocutório” ou performativo por outro: a do “perlocutório”, per, como “performativo” justamente, mas desta vez com o sentido de meio ou de médium e não o sentido de realização ou perfeição. Por minha parte, gostaria de pensar a retórica não apenas avaliando os usos que dela se fazem para o melhor e para o pior, na política como em todos os domínios que compõem nosso cotidiano, mas também como “arte do discurso” em seu vínculo com o que chamo agora de terceira dimensão da linguagem. Terceira, repito: nem o “falar de” constativo, dizer algo sobre algo, segundo o regime do verdadeiro e do falso próprio da filosofia, nem o “falar para” convincente, segundo o regime do persuasivo e do não-persuasivo que a filosofia atribui à retórica, mas, simplesmente, “falar”, e produzir imediatamente um efeito-mundo, fazer coisas com palavras.