Deleuze (LS:1-4) – devir e acontecimento

Salinas Fortes

Alice assim como Do outro lado do espelho tratam de uma categoria de coisas muito especiais: os acontecimentos, os acontecimentos puros. Quando digo “Alice cresce”, quero dizer que ela se toma maior do que era. Mas por isso mesmo ela também se toma menor do que é agora. Sem dúvida, não é ao mesmo tempo que ela é maior e menor. Mas é ao mesmo tempo que ela se torna um e outro. Ela é maior agora e era menor antes. Mas é ao mesmo tempo, no mesmo lance, que nos tornamos maiores do que éramos e que nos fazemos menores do que nos tornamos. Tal é a simultaneidade de um devir cuja propriedade é furtar-se ao presente. Na medida em que se furta ao presente, o devir não suporta a separação nem a distinção do antes e do depois, do passado e do futuro. Pertence à essência do devir avançar, puxar nos dois sentidos ao mesmo tempo: Alice não cresce sem ficar menor e inversamente. O bom senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao mesmo tempo.

Platão convidava-nos a distinguir duas dimensões: 1º) a das coisas limitadas e medidas, das qualidades fixas, quer sejam permanentes ou temporárias, mas supondo sempre freadas assim como repousos, estabelecimentos de presentes, designações de sujeitos: tal sujeito tem tal grandeza, tal pequenez em tal momento; 2º) e, ainda, um puro devir sem medida, verdadeiro devir-louco que não se detém nunca, nos dois sentidos ao mesmo tempo, sempre furtando-se ao presente, fazendo coincidir o futuro e o passado, o mais e o menos, o demasiado e o insuficiente na simultaneidade de uma matéria indócil (“mais quente e mais frio vão sempre para a frente e nunca permanecem, enquanto a quantidade definida é ponto de parada e não podería avançar sem deixar de ser; “o mais jovem torna-se mais velho do que o mais velho, e o mais velho, mais jovem do que o mais jovem, mas finalizar este devir é o de que eles não são capazes, pois se o finalizassem não mais viríam a ser, mas seriam.. .”)1.

Reconhecemos esta dualidade platônica. Não é, em absoluto, a do inteligível e a do sensível, da Ideia e da matéria, das Ideias e dos corpos. É uma dualidade mais profunda, mais secreta, oculta nos próprios corpos sensíveis e materiais: dualidade subterrânea entre o que recebe a ação da Ideia e o que se subtrai a esta ação. Não é a distinção do Modelo e da cópia, mas a das cópias e dos simulacros. O puro devir, o ilimitado, é a matéria do simulacro, na medida em que se furta à ação da Ideia, na medida em que contesta ao mesmo tempo tanto o modelo como a cópia. As coisas medidas acham-se sob as Ideias; mas debaixo das próprias coisas não havería ainda este elemento louco que subsiste, que “sub-vem”, aquém da ordem imposta pelas Ideias e recebida pelas coisas? Ocorre até mesmo a Platão perguntar se este puro devir não estaria numa relação muito particular com a linguagem: tal nos parece um dos sentidos principais do Crátilo. Não seria talvez esta relação essencial à linguagem, como em um “fluxo” de palavras, um discurso enlouquecido que não cessaria de deslizar sobre aquilo a que remete sem jamais se deter? Ou então, não havería duas linguagens e duas espécies de “nomes”, uns designando as paradas e repousos que recolhem a ação da Ideia e os outros exprimindo os movimentos ou os devires rebeldes?2 Ou ainda, não seriam duas dimensões distintas interiores à linguagem em geral, uma sempre recoberta pela outra, mas continuando a “sub-vir” e a substituir sob a outra?

O paradoxo deste puro devir, com a sua capacidade de furtar-se ao presente, é a identidade infinita: identidade infinita dos dois sentidos ao mesmo tempo, do futuro e do passado, da véspera e do amanhã, do mais e do menos, do demasiado e do insuficiente, do ativo e do passivo, da causa e do efeito. É a linguagem que fixa os limites (por exemplo, o momento em que começa o demasiado), mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado (“não segure um tição vermelho durante demasiado tempo, ele o queimaria; não se corte demasiado profundamente, isso faria você sangrar”). Daí as inversões que constituem as aventuras de Alice. Inversão do crescer e do diminuir: “em que sentido, em que sentido?” pergunta Alice, pressentindo que é sempre nos dois sentidos ao mesmo tempo, de tal forma que desta vez ela permanece igual, graças a um efeito de óptica. Inversão da véspera e do amanhã, o presente sendo sempre esquivado: “geleia na véspera e no dia seguinte, nunca hoje”. Inversão do mais e do menos: cinco noites são cinco vezes mais quentes do que uma só, “mas deveríam ser também cinco vezes mais frias pela mesma razão”. Do ativo e do passivo: “será que os gatos comem os morcegos?” é o mesmo que “será que os morcegos comem os gatos?”. Da causa e do efeito: ser punido antes de ter cometido a falta, gritar antes de se machucar, servir antes de repartir.

Todas estas inversões, tais como aparecem na identidade infinita têm uma mesma consequência: a contestação da identidade pessoal de Alice, a perda do nome próprio. A perda do nome próprio é a aventura que se repete através de todas as aventuras de Alice. Pois o nome próprio ou singular é garantido pela permanência de um saber. Este saber é encarnado em nomes gerais que designam paradas e repousos, substantivos e adjetivos, com os quais o próprio conserva uma relação constante. Assim, o eu pessoal tem necessidade de Deus e do mundo em geral. Mas quando os substantivos e adjetivos começam a fundir, quando os nomes de parada e repouso são arrastados pelos verbos de puro devir e deslizam na linguagem dos acontecimentos, toda identidade se perde para o eu, o mundo e Deus. É a provação do saber e da declamação, em que as palavras vêm enviesadas, empurradas de viés pelos verbos, o que destitui Alice de sua identidade. Como se os acontecimentos desfrutassem de uma irrealidade que se comunica ao saber e às pessoas através da linguagem. Pois a incerteza pessoal não é uma dúvida exterior ao que se passa, mas uma estrutura objetiva do próprio acontecimento, na medida em que sempre vai nos dois sentidos ao mesmo tempo e que esquarteja o sujeito segundo esta dupla direção. O paradoxo é, em primeiro lugar, o que destrói o bom senso como sentido único, mas, em seguida, o que destrói o senso comum como designação de identidades fixas.

Original

  1. Platão. Filebo, 24 d; Parmenides, 154-155.[]
  2. Platão. Crátilo. 437 e ss. Sobre tudo o que precede, cf. Apêndice 1.[]