- Orlandi & Machado
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Orlandi & Machado
Cogito cartesiano e cogito kantiano
Nada é mais instrutivo, temporalmente, isto é, do ponto de vista da teoria do tempo, do que a diferença entre o cogito de vista da teoria do tempo, do que a diferença entre o cogito de Descartes operasse com dois valores lógicos: a determinação e a existência indeterminada. A determinação (eu penso) implica uma existência indeterminada (eu sou, pois “para pensar é preciso ser”) — e a determina, precisamente, como a existência de um ser pensante: penso, logo sou, sou uma coisa que pensa.
O indeterminado, a determinação, o determinável
Toda a crítica kantiana consiste em objetar, contra Descartes, que é impossível fazer com que a determinação incida diretamente sobre o indeterminado. A determinação “eu penso” implica evidentemente algo de indeterminado (”eu sou”), mas nada nos diz ainda como este indeterminado é determinável pelo eu penso. “Na consciência que tenho de mim mesmo com o puro pensamento, sou o próprio ser; é verdade que desta maneira nada deste ser me é ainda dado a pensar.”1 Kant acrescenta, pois, um terceiro valor lógico: o determinável, ou, antes, a forma sob a qual o indeterminado é determinável (pela determinação). Este terceiro valor basta para fazer da Lógica uma instância transcendental. Ele constitui a descoberta da Diferença, não mais como diferença empírica entre duas determinações, mas Diferença transcendental entre A determinação e o que ela determina — não mais como diferença exterior que separa, mas Diferença interna e que relaciona a priori o ser e o pensamento um ao outro. A resposta de Kant é célebre: a forma sob a qual a existência indeterminada é determinável pelo Eu penso é a forma do tempo…2 As consequências disto são extremas: minha existência indeterminada só pode ser determinada no tempo, como a existência de um fenômeno, de um sujeito fenomênico, passivo ou receptivo, aparecendo no tempo. Deste modo, a espontaneidade, da qual tenho consciência no Eu penso, não pode ser compreendida como o atributo de um ser substancial e espontâneo, mas somente como a afecção de um eu passivo que sente seu próprio pensamento, sua própria inteligência, aquilo pelo qual ele diz EU, exercer-se nele e sobre ele, mas não por ele. Começa, então, uma longa história, inesgotável: EU é um outro ou o paradoxo do sentido íntimo. A atividade do pensamento aplica-se a um ser receptivo, a um sujeito passivo, que, portanto, representa para si esta atividade mais do que age, que sente seu efeito mais do que possui a iniciativa [152] em relação a ela e que a vive como um Outro nele. Ao “Eu penso” e ao “Eu sou” é preciso acrescentar um eu como posição passiva (o que Kant denomina receptividade de intuição); à determinação e ao indeterminado é preciso acrescentar a forma do determinável, isto é, o tempo. Ainda mais: “acrescentar” é um mau termo, visto tratar-se, antes, de estabelecer a diferença e interiorizá-la no ser e no pensamento. De um extremo a outro, o EU é como que atravessado por uma rachadura: ele é rachado pela forma pura e vazia do tempo. Sob esta forma, ele é o correlato do eu passivo aparecendo no tempo. Uma falha ou uma rachadura no Eu, uma passividade no eu, eis o que significa o tempo; e a correlação do eu passivo e do EU rachado constitui a descoberta do transcendental ou o elemento da revolução copernicana.
O Eu rachado, o eu passivo e a forma vazia do tempo
Descartes só concluía à força de reduzir o Cogito ao instante e de expulsar o tempo, de confiá-lo a Deus na operação da criação contínua. Mais geralmente, a identidade suposta do Eu só tem como garantia a unidade do próprio Deus. É por isso que a substituição do ponto de vista de “Deus” pelo ponto de vista do “Eu” tem muito menos importância do que se diz, na medida em que um conserva uma identidade que ele deve precisamente ao outro. Deus continua a viver enquanto o Eu dispõe da subsistência, da simplicidade, da identidade que exprimem toda sua semelhança com o divino. Inversamente, a morte de Deus não deixa subsistir a identidade do Eu, mas instaura e interioriza nele uma dessemelhança essencial, uma “desmarcação” no lugar da marca ou do selo de Deus. Eis o que Kant viu tão profundamente, ao menos uma vez, na Crítica da Razão Pura: o desaparecimento simultâneo da Teologia racional e da Psicologia racional, o modo pelo qual a morte especulativa de Deus acarreta uma rachadura do Eu. Se a maior iniciativa da Filosofia transcendental consiste em introduzir a forma do tempo no pensamento como tal, esta forma, por sua vez, como forma pura e vazia, significa, indissoluvelmente, o Deus morto, o Eu rachado e o eu passivo. É verdade que Kant [153] não continua sua iniciativa: o Deus e o Eu conhecem uma ressurreição prática. E mesmo no domínio especulativo, a rachadura é logo preenchida por uma nova forma de identidade, a identidade sintética ativa, ao passo que o eu passivo é somente definido pela receptividade, não possuindo, por esta razão, qualquer poder de síntese. Vimos, ao contrário, que a receptividade, como capacidade de ter afecções, era apenas uma consequência e que o eu passivo era mais profundamente constituído por uma síntese ela mesma passiva (contemplação-contração). A possibilidade de receber impressões ou sensações decorre disto. É impossível manter a repartição kantiana, que consiste num esforço supremo para salvar o mundo da representação: a síntese é aí concebida como ativa e apela para uma nova forma de identidade no Eu; a passividade é aí concebida como simples receptividade sem síntese. É numa avaliação totalmente distinta do eu passivo que a iniciativa kantiana pode ser retomada, e é nessa mesma avaliação que a forma do tempo mantém, ao mesmo tempo, o Deus morto e o Eu rachado. Neste sentido, é justo dizer que a saída do kantismo não está em Fichte ou em Hegel, mas somente em Hölderlin, que descobre o vazio do tempo puro e, nesse vazio, o afastamento contínuo do divino, a rachadura prolongada do Eu e a paixão constitutiva do Eu 3). Hölderlin via nesta forma do tempo a essência do trágico ou a aventura de Édipo como um instinto de morte com figuras complementares. É possível, assim, que a filosofia kantiana seja a herdeira de Édipo?
Todavia, introduzir o tempo no pensamento como tal é a prestigiosa contribuição de Kant? A pergunta deve ser feita, pois parecia que a reminiscência platônica já tinha este sentido. [154] O inatismo é um mito, assim como a reminiscência; mas é um mito do instantâneo, razão pela qual ele convém a Descartes. Quando Platão opõe expressamente a reminiscência ao inatismo, ele quer dizer que este apenas representa a imagem abstrata do saber, mas que o movimento real de aprender implica, na alma, a distinção de um “antes” e de um “depois”, isto é, a introdução de um tempo primeiro para esquecer o que soubemos, visto que, num tempo segundo, acontece-nos redescobrir o que esquecemos 4. Mas toda a questão é a seguinte: sob que forma a reminiscência introduz o tempo? Mesmo para a alma, trata-se de um tempo físico, de um tempo da Physis, periódico ou circular, subordinado aos acontecimentos que se passam nele ou aos movimentos que ele mede, aos avatares que o escandem. Sem dúvida, este tempo encontra seu fundamento num em-si, isto é, no passado puro da Ideia, que organiza em círculo a ordem dos presentes, segundo suas semelhanças decrescentes e crescentes com o ideal, mas que, do mesmo modo, faz com que a alma saia do círculo que ela soube conservar para si mesma ou com que redescubra o país do em-si. Acontece também que a Ideia é como o fundamento a partir de que os presentes sucessivos se organizam no círculo do tempo, se bem que o puro passado que a define ainda se exprima necessariamente em termos de presente, como um antigo presente mítico. Já era este todo o equívoco da segunda síntese do tempo, toda a ambiguidade de Mnemósina, pois esta, do alto de seu passado puro, ultrapassa e domina o mundo da representação: ela é fundamento, em-si, númeno, Ideia. Mas ela é ainda relativa à representação que ela funda. Ela exalta os princípios da representação, a saber, a identidade, da qual ela faz a característica do modelo imemorial, e a semelhança, da qual ela faz a característica da imagem presente: o Mesmo e o Semelhante. Ela é irredutível ao presente, superior à representação; e, todavia, ela apenas torna circular ou infinita a representação dos presentes (mesmo em Leibniz ou em Hegel é ainda Mnemósina que funda o desdobramento da representação no infinito). A insuficiência do fundamento é ser relativo ao que funda, assumir as características [155] daquilo que funda e se provar através delas. É mesmo neste sentido que ele é circular: ele introduz o movimento na alma, mais que o tempo no pensamento. Da mesma maneira que o fundamento é, por assim dizer, “dobrado”, devendo precipitar-nos num além, a segunda síntese do tempo se ultrapassa em direção a uma terceira síntese, que denuncia a ilusão do em-si como ainda sendo um correlato da representação. O em-si do passado e a repetição na reminiscência seriam uma espécie de “efeito”, como um efeito ótico, ou, antes, o efeito erótico da própria memória.
Original
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- KANT, Critique de la raison pure, Remarque générale concernant le passage de la Psychologie rationnelle à la cosmologie (trad. BARNI. Gilbert éd., I, p. 335).[↩]
- Ibid., Analytique, note du § 25.[↩]
- Sobre a forma pura do tempo e sobre a rachadura ou “cesura” que ela introduz no Eu, cf. HÖLDERLIN. Remarques sur OEdipe, Remarques sur Antigone (10/18), e o comentário de Jean BEAUFRET que sublinha fortemente a influencia de Kant sobre Hölderlin, Hölderlin et Sophocle, sobretudo pp. 16-26.
(Sobre o tema de uma “rachadura” do Eu, com relação essencial com a forma do tempo, compreendida como instinto de morte, lembremos três grandes obras literárias, muito diversas entre si: La bête humaine, de ZOLA; The crack-up, de F. S. FITZGERALD; Under the volcano, de M. LOWRY.[↩] - Sobre a oposição explícita entre a reminiscência e o inatismo. cf. Phédon, 76 a-d.[↩]